Em relação à vacinação de crianças e jovens, a DGS evidenciou bom-senso na sua decisão. Apesar disso, talvez seja ingénuo acreditar que a racionalidade ganhará a linha da frente. Em bom rigor, aquilo a que o país assiste neste tema (como noutros anteriores) é a um braço-de-ferro constante entre diferentes medos. De um lado, o medo de adultos que, para a sua própria segurança, apelam à vacinação de crianças contra a Covid-19. De outro lado, o medo sustentado por especialistas de que a vacinação de crianças possa gerar riscos de saúde superiores à própria Covid-19. Se isto fosse um debate científico, mediam-se os benefícios e os riscos de acordo com variáveis predefinidas e assumia-se uma decisão (foi a opção da DGS). Mas, na medida em que estamos no terreno da política, o peso dos respectivos medos flutuará conforme a pressão dos grupos de interesse, desafiando ou apoiando a posição da DGS nas próximas semanas. Vimo-lo com a espontânea cacofonia de orientações políticas destes últimos dias — desde o Presidente da República à Região Autónoma da Madeira. Vê-lo-emos com maior vigor com o aproximar do arranque das aulas, com possível revisão da decisão da DGS.

A pandemia tem-no demonstrado repetidamente: o medo é o ingrediente secreto da decisão política. Por um lado, quando imposto sobre a população, serve para empurrar a implementação de medidas controversas, enquanto argumento justificativo — recorde-se, o medo legitimou não raramente medidas impróprias de regimes liberais e que extravasaram os limites constitucionais. Por outro lado, quando bate no coração dos governantes, o medo congela a tomada de decisão e faz perdurar os impasses. Nesse aspecto, são vários os exemplos de ministros que sobrevivem nas respectivas pastas adiando decisões complexas até que a realidade imponha por si mesma um caminho. Tal como são também inúmeros aqueles que, perante medidas em que até acreditam, travam ímpetos reformistas por receios de contestação e bloqueios nos respectivos sectores.

Se funciona como ingrediente secreto, o medo assume uma enorme preponderância na equação da decisão política. Percebê-lo é fundamental para manipular e influenciar decisões. Um caso óbvio de quem o percebeu é Mário Nogueira, líder sindical da Fenprof — justiça lhe seja feita, ninguém exerce melhor este tipo de pressão do que ele. Recorde-se, por exemplo, quando em Julho de 2020 se discutia a reabertura das escolas (que fecharam integralmente entre Março e Setembro). Disse então o líder sindical da Fenprof: caso se verifiquem situações de doença, contágio e morte por Covid-19 nas escolas, a estrutura sindical acusaria o Ministério da Educação e a DGS de “responsabilidade moral e eventualmente material”. Traduzindo: se morresse um professor por Covid-19, a Fenprof responsabilizaria directamente o ministro da Educação por essa morte. A indignidade da ameaça dispensa comentários. Mas que isso não sirva para menosprezar um político hábil e experiente como Mário Nogueira, que soube instrumentalizar o medo em seu benefício. E, no final, saiu a ganhar: os professores integraram a lista de prioritários na vacinação, por critérios que foram corporativos e políticos, em vez de científicos ou de saúde pública.

Na preparação do próximo ano lectivo, o medo terá o palco principal e será decisivo para esta questão da vacinação das crianças. Em breve, a pressão política aumentará, e não faltará quem venha garantir que as escolas só poderão funcionar convenientemente e em segurança se as crianças estiverem vacinadas. O argumento é duvidoso — os alunos serem ou não enviados para casa para isolamento dependerá mais das orientações da DGS do que da vacinação. Mas o clima de medo será sempre muito real. Será, também, o suficiente para forçar decisões políticas? Veremos. Mas, vacinem-se as crianças ou não, o que se pode pedir é apenas isto: que a decisão seja sempre suportada pelos especialistas e pelas evidências científicas. Tudo o resto seria uma derrota: a habitual submissão ao medo imposto pelo elo mais forte. Se ambicionamos realmente a prometida “libertação”, então o medo tem de parar de vencer.

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