Como a maioria das pessoas, estou muito entusiasmado com as últimas notícias sobre o clima. Têm sido tantas e tão boas, que até tenho dificuldade em escolher a mais agradável. Mas, se tiver de o fazer, selecciono duas que mostram bem o optimismo com que podemos enfrentar a crise climática, uma internacional, outra portuguesa.

A primeira é esta: “Hotter than the human body can handle: Pakistan city broils in world’s highest temperatures”, sobre o calor que faz em Jacobabad, cidade paquistanesa onde chegaram a estar 52°C, uma temperatura superior à que o corpo humano aguenta. O título prenuncia logo boas novidades, mas é lá no meio da notícia que encontramos a reluzente pepita de esperança:

“Mr [Tom] Matthews and colleagues last year analysed global weather station data and found that Jacobabad and Ras al Khaimah, north east of Dubai in the United Arab Emirates, have both temporarily crossed the deadly threshold. (…) Jacobabad and Ras al Khaimah may share fierce temperatures, but they are otherwise very different and illustrate the different challenges that places will face under climate change. In the wealthy UAE, where electricity and air conditioning are plentiful, the threshold may have little effect on residents. In Jacobabad, where many subsist on wages of only a couple of pounds a day, residents must find other ways to adapt. (…) Electric solutions are undermined by frequent power cuts however. In the city centre, residents often lose power for three or four hours, while in more distant areas the gaps are longer.”

Calculo que o leitor, como eu, fique mais descansado com esta informação. Não em relação aos habitantes de Jacobabad, claro. Esses estão mesmo tramados. Mas em relação aos de Ras al Khaimah, a quem o calor não afecta grande coisa.

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O que distingue as duas metrópoles? Já se viu que não é a canícula. Nem – sabemo-lo de outras histórias – a vontade dos seus cidadãos em esconderem as mulheres por baixo de reposteiros. Ou a tolerância que têm para com homossexuais. Nem a falta de jeito para o futebol que quer paquistaneses, quer árabes, parecem ter. Não, o que os distingue é o acesso a electricidade abundante. Enquanto a cidade paquistanesa enfrenta temperaturas infernais e os seus habitantes derretem, a cidade dos Emirados também enfrenta temperaturas infernais, mas os seus habitantes marimbam-se. Uns passam mal, outros mantém-se mal passados.

Esta diferença entre dois lados do mesmo forno é uma bizarria. É como se Deus tivesse aniquilado Sodoma e Gomorra com fogo e enxofre, mas os sodomitas mais abastados nem tivessem reparado na destruição, abafada pelo ruído dos Daikin Inverter a refrigerarem os seus casebres de terracota, mantendo-os nuns muito suportáveis 22°C. Para os Khaimahitas, a pimenta no cu dos Jacoababaenses (que, naquela tradição culinária, é provável que seja literal) é mesmo refresco.   

Portanto, parece-me que é isto, certo? Se estamos mesmo à rasca com o calor, liguem-se as ventoinhas, ponha-se o ar condicionado a bombar e o frigorífico a gelar minis. Com electricidade abundante e barata tudo se resolve.

E é aqui que entra a segunda notícia animadora: “Projeto de hidrogénio da Galp e EDP só é viável com subsídios de 150 milhões”. Aqui, ficamos a saber que, de acordo com o consórcio H2Sines, que vai entrar no negócio do hidrogénio, o negócio do hidrogénio não é negócio:

“Nesse documento, no capítulo 4.2, o consórcio H2Sines reconhece a falta de maturidade deste primeiro projeto de 100 MW para produzir hidrogénio verde em Sines. ‘O projeto H2Sines é caracterizado por falhas de mercado que precisam de apoios para serem ultrapassadas. Estas falhas resultam da tecnologia, que precisa de amadurecer e reduzir custos, da inexistência de um mercado de hidrogénio verde e da falta de enquadramento regulatório (…) O projeto não será exequível sem medidas de apoio que permitam ultrapassar estas falhas de mercado e cobrir o défice de financiamento’.

Apesar disso, os promotores do projeto dizem estar disponíveis para avançar com capitais próprios ou dívida para permitir que o projeto arranque, mas o objetivo é encontrar apoios a fundo perdido que colmatem as tais necessidades de cerca de 150 milhões.”

Traduzindo para quem costuma pagar contas com o seu próprio dinheiro: não há comprador para este produto que ainda não existe, que nós nem sequer sabemos produzir com qualidade e que, seja como for, vai ser sempre caríssimo. Mas, se nos derem dinheiro, não há razão para não avançarmos com isto.

Trata-se de uma análise custo-benefício, preparada por uma equipa multidisciplinar de consultores, para chegar à seguinte conclusão: isto é merda, mas dêem-nos a massa. Como relatório empresarial, é fraco. Já como ferramenta de apoio à extorsão é irrepreensível. No fundo, é como um arrumador fazer uma apresentação de power point a explicar por que razão é vantajoso dar-lhe uma moedinha para a droga.

Este documento do H2Sines explica detalhadamente as várias razões pelas quais o projecto não é exequível. Mas indica (nem se dá ao trabalho de explicar, com ou sem detalhe) a única razão necessária para o investimento avançar: não é um investimento, na medida em que o dinheiro não é deles.

O que remete para a questão fundamental: qual é a melhor fonte de energia? Carvão? Muito poluente. Petróleo e gás? Também sujos. Hídrica? Prejudica o ambiente. Nuclear? Cautela com Chernobyl. Renováveis? Intermitentes e pouco fiáveis. Não, a melhor fonte de energia são os subsídios. Pelo menos em Portugal é o combustível que faz andar tudo mais depressa – mesmo aquilo que, supostamente, não consegue andar. Com subsídios, as únicas emissões que chateiam são as de cheques. Mas, se não estivermos atentos, nem damos por elas. O seu rasto desaparece logo.

E é por isso, por – mais uma vez – nos prepararmos para pagar a uns tipos para produzirem electricidade mais cara do que a que podíamos comprar em condições normais, que estou tranquilo em relação às alterações climáticas. É impossível a situação ser dramática se, em vez de assegurarmos acesso barato à energia que arrefece as casas quando faz calor e as aquece quando faz frio, andamos entretidos a electrolisá-lo na H2Sines. A coisa não pode estar preta, se ainda temos tanto para torrar.

A não ser, claro, que o plano seja justamente esse: tornar a electricidade tão cara que deixemos de a utilizar, não contribuindo para mais emissões de CO2, na esperança que isso detenha o aquecimento global. Mesmo assim, não sei se é um grande plano. Vamos admitir que, cortando no consumo de energia, é possível evitar que a temperatura média aumente 1,5°C até ao fim do século. Será preferível viver com 38,5°C e ar condicionado? Ou com 37°C e um leque? Em Jacobabad de certeza que já sabem. Em Ras al Khaimah é que talvez ainda não saibam. Vão descobrir no dia em que houver um apagão.