Ao longo das últimas semanas, vários jornalistas têm insistido na pergunta: “quem paga tudo isto”?

A questão faz sentido perante aquela que será a maior recessão europeia desde a 2ª Guerra Mundial. Da esquerda à direita parece existir consenso alargado quanto à necessidade de intervenção estatal (“mais dinheiro”, “mais depressa”), mas os números da ajuda económica a somar aos efeitos automáticos da quebra de receitas (IVA, IRS, IRC, IMT,..) e aumento das despesas (saúde, subsídio de desemprego, rendimento de inserção social,…), são astronómicos. Como na recessão anterior, poderemos voltar a ver, em vários países da Europa, deficits acima de 10% do PIB. Nos EUA a previsão está perto dos 18%.

Dado que as receitas não chegam para pagar as despesas há, de imediato, um aumento do endividamento público de todos os países europeus. A isso poderemos vir a somar os efeitos contabilísticos que possam resultar da inclusão de dívidas já existentes em várias empresas que passem a integrar o sector público durante a crise. Por todas estas razões, vários países irão bater seguramente, valores record da sua dívida pública.

Apesar dos valores envolvidos na crise, o BCE está presente no mercado comprando dívida pública. Dado o seu poder de fogo (teoricamente ilimitado, em Euros), tem conseguido não apenas manter os fluxos de financiamento a todas as economias, mas manter também todas as taxas de juro em níveis muito inferiores aos registados na última crise, atenuando o que seriam, de outro modo, deficits ainda mais elevados. Para além da extensão em volume, do plano regular de compra de dívida que antes da crise já superava os 2 triliões de Euros, foi também criado um plano especial de compras referente à pandemia (PEPP). Trata-se de um plano temporário no valor de 750 biliões de Euros a gerir até ao fim da crise do Covid-19. Com tudo isto, o Balanço do BCE já ultrapassou a fasquia dos 5 triliões de Euros em activos. A dimensão do seu balanço aumentará segundo alguns analistas de cerca de 40% para 60% do PIB da Zona Euro, já depois de ter mais do que duplicado o seu balanço entre 2012 e 2019.

Garantido o financiamento das necessidades imediatas o que se segue? O que se pode seguir, em matéria das condições de financiamento é um progressivo ajustamento em baixa das expectativas dos analistas e investidores em dívida pública, e das Agências de Rating. Sendo expectável, perante o aumento da dívida pública, alguma degradação dos Ratings, está criado o suspense sobre o desfecho da crise: vamos ter aumentos de taxas de juro e dificuldades de financiamento de alguns países que obriguem a novos resgates, planos de austeridade, agitação política e social?

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Ora a União Europeia possui uma experiência negativa da crise anterior que não pretende ver repetida. Após o início da recessão mundial em 2008 foi prometido um plano de recuperação económica (também se falou num “plano Marshall”, tal como agora), mas dois anos volvidos, perante a ausência de intervenção de suporte do BCE no mercado de dívida pública, os juros subiram em vários países com dívidas mais elevadas. Finalmente, com as reticências do mercado em financiar alguns Estados, chegaram os planos de resgate e a austeridade.

As feridas políticas da crise anterior ainda não cicatrizaram totalmente e, também por isso, é preferível concentramo-nos na crise actual. Mas a Europa não pode permitir que os planos de recuperação económica desta crise fiquem suspensos a meio, em vários países, por dificuldades de financiamento, como sucedeu na crise anterior. Isso implica não só a intervenção contínua do BCE (desviando-se, se necessário, da sua “chave” de compras proporcionais porque haverá países com maiores necessidades que outros), mas também maior firmeza quanto à extensão da sua intervenção ao longo do tempo.

As clássicas respostas para a questão “quem vai pagar tudo isto” são conhecidas: “todos nós, contribuintes, vamos pagar isto”; ou “a dívida representa sempre um encargo sobre as gerações futuras, seja por aumento de impostos ou redução de despesas públicas”. Contudo, apesar dos juros baixos, as dívidas de alguns países são de tal forma elevadas que dificilmente se conseguem construir cenários de crescimento após a crise em que esta dívida possa ir descendo paulatinamente. Sucede que as cargas fiscais já são elevadas e a pressão política para o aumento de várias despesas em serviços públicos, apoios sociais e infra estruturas só tende a crescer.

É neste contexto que muitos defendem que a dívida de combate à crise seja mutualizada (chamem-se Eurobonds, Coronabonds, Recovery Bonds,…) não apenas como forma de assegurar um fluxo contínuo de financiamento durante a crise, mas como forma de dispersar pelos contribuintes de toda a Europa a fatura a pagar no futuro.

As divergências de opinião nesta matéria são menores do que na crise anterior mas mantêm-se vivas: não estamos a falar do envio de equipas de resgate para um terramoto ou de aviões para combate a incêndios. Estamos a falar de muitos biliões de Euros em caso de incumprimento de algum Estado. Quer na perspectiva dos países mais ricos da União quer na perspectiva dos países mais endividados, a questão tem potencial para agravar as visões nacionalistas e proteccionistas, comprometendo a União.

Foi em grande parte para contornar o problema do financiamento de vários países e da mutualização que o Conselho Europeu decidiu avançar com um Fundo de Recuperação. A União Europeia, através do Fundo irá financiar-se no mercado num montante que poderá situar-se entre 1.5 e 2 triliões de Euros (uma espécie de “central de compras”) e depois emprestará ou dará esse dinheiro aos vários países membros. Ainda falta encontrar um consenso nesta matéria, mas o problema do financiamento parece estar resolvido de múltiplas maneiras. Resta então saber como se vai pagar tudo isto.

Emitir moeda é a solução

Felizmente, há uma solução. Uma fracção muito substancial de tudo isto pode ser paga recorrendo à criação de moeda. É uma solução em grande escala, só ao alcance dos grandes espaços económicos com moedas de uso internacional.

Os países pequenos, sem moeda de uso internacional (como seriam hoje Portugal, Itália ou Espanha sem o Euro), não devem tentar isto em casa. De resto, não é por acaso que mais de 90 países pediram já a intervenção do FMI nesta crise. Não conseguem sair dela criando a sua própria moeda para fazer face às suas despesas porque isso implica fortes desvalorizações, inflação e dificuldades de importação (dos produtos mais básicos aos bens intermédios). Essa foi também a experiência marcante dos alemães antes da 2ª Grande Guerra que motivou a aversão que ainda mantêm ao tema da criação de moeda.

Na actual crise, a expectativa de fortes impactos nos mercados emergentes está já refletida no fluxo de saída de capitais que, no primeiro mês da pandemia, atingiu perto de 70 biliões de Euros, mais do triplo do que sucedeu após a falência da Lehman Brothers. E em consequência o FMI decidiu duplicar as suas facilidades de assistência financeira de emergência, para poder enfrentar uma procura de financiamento de 100 biliões de Euros, que tenderá a ser excedida, atendendo a que as estimativas de perdas de receitas de exportação (excluindo a China) atingem 800 biliões de Euros e, mesmo líquidas da queda das importações, estaremos a falar de pelo menos 200 biliões de Euros de degradação do saldo da balança comercial e, consequentemente, das reservas externas destes países. Acresce a queda das transferências dos emigrantes, estimada em 100 biliões de Dólares para o ano em curso.

Contudo, a realidade nos grandes espaços económicos com moedas de uso internacional é outra.

O primeiro aspecto a esclarecer é que a criação de moeda de que estamos a falar não se faz pela impressão de notas ou cunhagem de moedas. Esse é um modo limitado e pouco eficaz de criar moeda. Esqueçamos por isso todas as imagens de Helicopter Money dos manuais de economia dos anos 70 século passado. Ainda assim, vale a pena reter um ponto: dado que o custo de impressão das notas é substancialmente inferior ao valor nelas inscrito, há um lucro que reverte a favor do Banco Central e que pode ser transferido para o Estado. Isto é, as despesas públicas pagas deste modo, com os lucros da impressão de moeda, não representam um fardo para ninguém.

Qual a alternativa à impressão de notas? A forma como os Bancos e Bancos Centrais criam moeda é através de financiamento. Quando pedimos um crédito ao Banco, este regista o crédito do lado dos seus activos e aumenta o valor da nossa conta de depósito pelo valor do crédito (passivo). A massa monetária aumenta. Está criada moeda. É claro que apesar de se ter aumentado a massa monetária, não deixamos de encarar esse valor como uma dívida que implicará, em sentido inverso, quando a amortizarmos, a destruição de moeda. Assim, regressamos à estaca zero: “vamos ter de pagar tudo isto”. Contudo, algo se altera se, na maturidade, nos é concedido um novo empréstimo para pagar o anterior. É claro que, visto assim, ainda só estamos a adiar o problema do pagamento da dívida agora renovada. É um adiamento mas alguém ainda vai ter de pagar a fatura, seja o cliente, mais tarde, ou o Banco que assume o prejuízo por eventual incumprimento.

O caso muda de figura quando falamos de Bancos Centrais e do financiamento a diferentes Estados membros detentores do capital desses Bancos Centrais. Embora os estatutos do BCE não permitam o financiamento directo dos Estados membros (o que parece algo anacrónico face à liberdade dos EUA, Japão ou Inglaterra se financiarem junto do seu Banco Central), o BCE encetou há poucos anos – contra a vontade do Bundesbank – um programa de compras de dívida pública que vem renovando sistematicamente e que agora ampliou.

Ora enquanto estas compras forem renovadas (e podem ser renovadas para sempre), ninguém realmente, paga isto. Contabilisticamente este valor é ainda registado como uma dívida dos Estados e um ativo do BCE, mas na prática, corresponde à criação duradoura de moeda. O BCE não tem qualquer prejuízo e os contribuintes actuais ou de gerações futuras não suportam qualquer fardo com as amortizações (e os juros, reduzidos, podem ser adicionados à renovação dos empréstimos).

O aspecto mais relevante é que os empréstimos que sejam vistos como criação de moeda duradoura não são verdadeiros empréstimos. Esse é apenas o meio técnico para criação da moeda e é como tal que deveriam ser encarados e tratados, inclusive pelas Agências de Rating. Foi aliás exatamente isso que foi afirmado há dias pela agência S&P, ao confirmar o rating de Itália, justificando essa decisão precisamente com o reconhecimento da intervenção do BCE para evitar o agravamento das condições da dívida pública, não obstante reconhecer o forte aumento que esta dívida irá registar.

Se deduzirmos ao valor da dívida total de cada Estado o montante na posse do BCE a renovar continuamente, então constatamos que o fardo das gerações actuais e futuras é muito menor. No caso português, no final de 2019, a dívida pública bruta representava 117.7% do PIB, mas a dívida líquida das compras do BCE não ia além dos 100% (o stock de dívida pública portuguesa no Banco Central rondava os 20% do PIB).

A dívida bruta pode subir agora para valores muito acima dos 135%, mas não há motivo para que a dívida líquida de compras do BCE (e também de depósitos do sector público) não permaneça próxima de 100%. É disso que necessitamos não apenas para combater esta crise mas, tal como faz o Japão há 30 anos, para manter a economia à superfície apesar da sua extraordinária competitividade externa, elevada educação e produtividade da sua população.

Embora a experiência do BCE seja muito recente, podemos constatar que o Japão e os EUA fazem isto há décadas, sem sombra de inflação, Não por mera sorte ou acaso. É relativamente fácil explicar porque é que isso não sucede em economias de grande dimensão com moedas nucleares, apesar dos muitos triliões emitidos.

Por um lado, há um largo excesso de capacidade produtiva (uma oferta global muito elástica). Já existia antes da crise. Agora esse fosso foi drasticamente aumentado. Portanto, não se espera que mais moeda gere inflação.

Por outro lado, o ouro deixou de ser numerário para a formação de preços (ao invés do que sucedia na Alemanha dos anos 20, ninguém vê hoje uma desvalorização das moedas face ao ouro como um sinal relevante para revisão geral dos preços de bens ou serviços).

Acresce que a potencial inflação por via de uma depreciação cambial das moedas nucleares não constitui problema (estamos a falar de espaços de grande dimensão que comerciam interna e externamente nas suas próprias moedas e estamos a falar de países com moedas satélites, pouco interessados na apreciação das suas moedas, sendo relativamente fácil combater qualquer pressão nessa direção).

Finalmente, não existe qualquer incompatibilidade entre a estabilidade de preços e o financiamento monetário desde que este ocorra de forma controlada e decidida pelo próprio banco central.

Os 30 anos de experiência japonesa são mais que suficientes para encarar a realidade (positiva) de frente. Muitas vezes recusamos enfrentar a realidade quando esta se torna demasiado negativa. Neste caso, ignorar uma solução positiva para pagar o esforço descomunal de reconstrução económica apenas porque contraria o que aprendemos em manuais de economia do século passado, não é uma “opção” à altura dos tempos que atravessamos. De resto, nesses manuais também não figuravam taxas de juro ou preços do petróleo negativos!

É pena que não se debata claramente o tema e que o BCE não assuma o que está a fazer, porque continuará a ter que fazê-lo, a bem ou a mal, sob pena de dissolução da União. O BCE poderá extinguir dentro de 2 anos o plano de emergência que criou agora. Mas a dívida que agora já comprou (ou vai comprar) ao abrigo desse plano terá de continuar a rodar no seu balanço, tal como a dívida adquirida ao abrigo do plano de intervenção já existente.

Se assumisse isso, o BCE ajudaria os agentes económicos a perceberem que esta dívida pública não terá que ser paga por impostos futuros, contribuindo para impulsionar o consumo e o investimento privados.

Do mesmo modo, o debate claro sobre o tema pode ajudar a finalizar o acordo sobre o Fundo de Recuperação. Desde logo porque o financiamento do Fundo no mercado pode ir parar directamente ao balanço do BCE e aí ficar em rotação (criação de moeda em favor do Fundo). Nesse caso, tirando a necessidade de o Fundo apresentar um balanço equilibrado (ativos/passivos), nem se vê porque é que o Fundo não poderia dar subvenções aos vários Estados em vez de emprestar o dinheiro que levantou no mercado/BCE. A Comissão não teria verdadeiramente de pagar os empréstimos parqueados no BCE (apenas necessita que rodem) pelo que poderia atribuir subvenções. Mas mesmo que o financiamento do Fundo não vá parar ao BCE, a dívida contraída pelos Estados junto do Fundo, pode ela própria ir parar ao balanço do Banco Central.

Convém que os mercados e as Agências de Rating saibam disto. Na crise anterior Mario Draghi celebrizou-se, já tardiamente, com a frase de que tudo faria para salvar o Euro (“whatever it takes”). Agora é necessário que Christine Lagarde garanta que tudo fará “for as long as it takes”. Isso envolve não apenas os montantes necessários aos pacotes de intervenção/ajuda, mas basicamente, o valor dos deficits nos dois próximos anos (ou, no mínimo, a diferença face aos planos iniciais).

É evidente que tem que existir uma fronteira entre a estabilidade financeira a assegurar pelo BCE e eventuais estratégias individuais de países para aumentarem o seu endividamento à custa dos restantes, para reduzir o risco moral (porque temos um banco central, mas vários países). De facto, a linha de fronteira entre favorecer comportamentos orçamentais indisciplinados e evitar distorções nos mercados financeiros é muito fina. Mas na situação em que estamos, não se trata de qualquer comportamento individual, trata-se sim de um fenómeno que todos afeta, embora com níveis de intensidade diferente. Não é um choque simétrico: é um choque com a mesma origem mas impactos assimétricos e de uma tal dimensão que exige uma resposta comum.

Recordar o comportamento passado, como sucedeu na intervenção infeliz do Ministro das Finanças holandês é abrir a porta à revisitação do passado e de mágoas antigas, que é absolutamente inconsistente com o que se exige hoje e com o espírito da criação da CEE. Nunca teria sido assinado o Tratado de Roma se França e a Holanda estivessem a confrontar a Alemanha com o seu passado nazi e a invasão desses países, ou a Alemanha confrontasse França com o Tratado de Versailles. Portanto, aquilo que interessa é onde estamos hoje e encontrar a melhor forma de resolver o enorme problema que temos pela frente.

O controlo da curva de rendimentos

No mesmo passo da criação de moeda, uma estratégia a ponderar pelo BCE seria o denominado Yield Curve Control (YCC), o controlo da curva de rendimentos.

Esta estratégia está em vigor no Japão, desde setembro de 2016. O YCC está igualmente a ser seguido na Austrália desde março último, tendo também sido ponderada pelos EUA durante a Crise Financeira Global da última década, após a experiência iniciada em 1942, logo a seguir à entrada do país na Segunda Guerra Mundial, e mantida até 1951, precisamente para fazer face às necessidades de financiamento do Estado num período crítico. Não estamos, portanto, a falar de uma ficção, nem de algo extraordinariamente original. É um instrumento que está ao dispor dos bancos centrais e que deve ser utilizado para assegurar a estabilidade financeira, sem colocar em causa a estabilidade de preços.

Efetivamente, não é verdade que, como afirmou Christine Lagarde, o BCE não esteja cá para reduzir os spreads entre as dívidas públicas dos diversos países da Zona Euro. Tendo o BCE como objetivo final assegurar a estabilidade de preços, isso significa ter inflação reduzida, mas ainda assim inflação. Ora dificilmente conseguirá evitar a deflação se tiver largas regiões da zona monetária deprimidas ou mesmo com crescimento económico anémico associado a níveis muito díspares de taxas de juro, como aliás se viu na crise anterior. Acresce que situações de forte perturbação dos mercados e das economias tendem a prejudicar o funcionamento dos mecanismos de transmissão da política monetária.

Este papel do BCE é ainda mais importante se tivermos em conta que as taxas de juro da dívida pública determinam não apenas o custo de financiamento dos Estados, mas também, em larga medida, o custo para as empresas que estão sediadas nesses países.

Se ainda se compreenderia que empresas predominantemente orientadas para os mercados domésticos enfrentassem custos de financiamento diferentes simplesmente devido, em grande parte, às diferenças entre a perceção dos mercados acerca do risco de crédito dos respetivos Estados, tal faz menos sentido quando estamos perante empresas que vendem para os mercados globais. Esta situação apenas encontra um racional: os mercados entendem que, não se assegurando a liquidez ou solvência do Estado, a única resposta possível é o incumprimento (e consequente austeridade que se reflecte nas empresas), ou a saída da União Monetária, quando na verdade existe, pelo menos, mais uma resposta: a atuação do BCE.

Não deixa de ser curioso que, depois de durante os primeiros 10 anos da vida do Euro alguns terem confundido risco de crédito com risco cambial, pensando-se que a eliminação do risco cambial na zona Euro correspondia à igualização do risco de crédito dos vários Estados (recorde-se que Portugal chegou a pagar spreads a 10 anos face à Alemanha próximos dos 10 pontos de base), agora os mesmos mercados reconheçam implicitamente a possibilidade de existir um incumprimento ou uma reestruturação da dívida italiana, mas tal opção nunca integre a discussão política – é o elefante na sala.

Evidentemente, em tal situação, apesar de parte dessa dívida estar em investidores estrangeiros e no BCE, o maior impacto seria nos bancos italianos, que provavelmente necessitariam de enormes aumentos de capital. Mas isso até poderia ser feito sem a Itália abandonar o Euro. O resultado final seria “simplesmente” uma enorme perda para os investidores internacionais e para o BCE, acompanhada da nacionalização do sistema bancário italiano e, certamente, o agudizar do extremismo político, que levaria a Itália para bem longe dos ideais europeus. Temos andado tão preocupados com o contágio do risco dos bancos aos soberanos e esquecemo-nos frequentemente do contágio do risco dos soberanos às empresas não financeiras e também aos bancos (o que aliás era um tema recorrente há alguns séculos).

Portanto, o BCE terá que se preocupar com as taxas de juro na globalidade dos prazos, assegurando o tal controlo da curva de rendimentos, de modo a impedir que evoluam para níveis indesejados. E terá que fazê-lo evidentemente, para todos os países da União Monetária. No fundo, é uma extensão do poder do Banco Central, com a possibilidade de exercer influência sobre, ou mesmo determinar, as taxas de juro de longo prazo, ou pelo menos um intervalo de flutuação, assumindo o compromisso de fazê-lo até que seja atingido o seu objetivo de inflação. Algo que o BCE poderia até já ter feito, dado que o Quantitative Easing está em vigor há 5 anos e o crescimento económico e dos preços na zona euro manteve-se reduzido.

Para controlar as taxas de juro de longo prazo na zona Euro, o BCE dispõe de um poder de fogo ilimitado. Estamos a falar de dívida denominada em Euros, pelo que não existem restrições de reservas cambiais como sucede com dívida em moeda estrangeira, ou como quando vários países europeus procuravam garantir a permanência das suas moedas nos intervalos de flutuação do Mecanismo de Taxas de Câmbio de há 30 anos.

Conforme se irá demonstrar nesta crise, a criação de moeda e acessoriamente, o controle das curvas de taxa de juro pode ser, verdadeiramente, a solução para a UE. Um alívio para os contribuintes dos países mais endividados e para os países mais ricos que receiam pagar a factura das dividas dos demais. Para além disso, é também a possibilidade de criação de moeda com regras claras, que paradoxalmente permitirá não só maior folga orçamental, mas a criação de limites verdadeiramente dissuasores de eventuais/verdadeiros casos de indisciplina. Um tema para outra ocasião.

Rui Martins dos Santos é Economista e ex-Administrador do BPI
Jorge Barros Luís é Economista, Professor Associado Convidado do ISEG, Universidade de Lisboa