Haverá poucas discussões mais estéreis do que esta sobre se Portugal é um país racista. Estéril porque é uma discussão geralmente associada a crimes que envolvem brancos e negros, a quente (sem que os factos estejam apurados e as investigações policiais realizadas) e sem que seja claro se a cor da pele foi a motivação para o crime. Estéril porque limita as manifestações de racismo a crimes de ódio e violência, quando esta será apenas a ponta do icebergue de inúmeras formas diárias de discriminação, que condicionam vidas e encolhem horizontes. E estéril porque estes debates efémeros e generalistas nunca colocam as perguntas realmente importantes. Como estas: quando comparadas a brancos com as mesmas qualificações, as minorias raciais em Portugal são prejudicadas (e, se sim, quais e em que grau) no recrutamento para empregos, nos rendimentos, na habitação e na realização de contratos de arrendamento, no acesso a serviços financeiros, na participação em negócios?
É sempre uma desilusão constatar que estas perguntas rareiam no debate político que rodeia o racismo. Não porque o racismo não seja um tema político predominante, mas porque as abordagens que lhe são feitas caem em declarações políticas (no melhor dos casos) ou em meros oportunismos para canalizar agendas partidárias/ ideológicas. Seja para manifestações e contra-manifestações (como esta e esta ou esta e esta, onde o racismo deixa de ser verdadeiramente o foco). Seja para defender que a “solução” para o racismo é abolir o modelo económico capitalista (como se o racismo fosse uma invenção dos mercados e não tivesse pergaminhos históricos noutros contextos sociais e políticos). Ora tudo isto não é apenas a soma de oportunidades perdidas, é uma forma indirecta de instigar ódio e ressentimento social, e uma perversão que converte os partidos em ninhos de abutres, à espera de vítimas de racismo ou de crimes violentos que encaixem nas suas narrativas. É contraproducente, claro, mas é sobretudo moralmente ignóbil.
O debate sobre o racismo não deve circunscrever-se a isto. Mas, em boa verdade, é difícil encaminhá-lo para outro lado: faltam indicadores e recolha de dados objectivos, que permitam compreender a extensão de discriminações racistas na sociedade portuguesa. Ou seja, aquelas perguntas acima — sobre discriminações raciais no recrutamento profissional, na escolaridade, nos rendimentos, nas oportunidades — não têm resposta. Nos levantamentos estatísticos que orientam as políticas públicas, não há dados étnicos/ raciais que possibilitem o cruzamento com indicadores económicos, sociais e profissionais. E como não é possível aplicar um tratamento sem antes proceder a um diagnóstico, torna-se inconsequente enfrentar uma questão como o racismo sem dados, às escuras e à mercê de percepções (positivas ou negativas) que poderão não corresponder à realidade. Quem quiser realmente promover políticas públicas contra discriminações racistas tem por onde começar: a defesa de recolha de dados que incluam a dimensão racial, de forma a realçar padrões e discutir soluções que estejam ajustadas à realidade.
Não ignoro que o tema é sensível e que, no ano passado, já foi alvo de uma ampla discussão à volta da inclusão de identificação étnica nos Censos 2021 — a decisão foi a de não incluir questões étnicas nos Censos, uma decisão que o Presidente da República considerou sensata, apesar de o grupo de trabalho formado a este propósito ter dado parecer positivo. Aquando deste debate, dei os meus dois tostões para a discussão nesta coluna. E não só mantenho a posição crítica à decisão do INE e ao apoio da Presidência, como creio que a emergência de inúmeras discussões fúteis e gratuitas sobre o racismo em Portugal tem valorizado a minha posição: se queremos mesmo combater o racismo nas suas múltiplas manifestações, precisamos de dados empíricos e informação fiável, na medida em que nenhum desafio social se derrota optando pela ignorância. É, aliás, o que já se faz em algumas áreas do Estado, meio às escondidas. Na Educação, por exemplo, publica-se o perfil escolar dos alunos de etnia cigana — porque, goste ou não de aplicar indicadores étnicos, essa informação é relevante para a monitorização de um sistema educativo com aspirações de constituir elevador social.
O que temos não serve: manifestações e contra-manifestações, num debate submetido à baixa política, promovido pelo sensacionalismo e limitado a percepções movidas pela ideologia. Dito de forma simples: combustível para os extremismos que promovem o ressentimento e fragmentam o tecido social. Isto em nada contribui para melhorar a vida daqueles que são efectivamente vítimas de racismo. Por isso, vire-se a agulha. Não interessa discutir se Portugal é ou não um país racista. Importa simplesmente constatar que o racismo existe em Portugal (como em todos os países), que estará mais enraizado numas áreas da sociedade portuguesa do que noutras e que, para lhe dar resposta, é necessário um conhecimento objectivo e sustentado em dados, para orientar a discussão construtiva de soluções. Continuar de olhos vendados, sem dados e sem indicadores comparáveis é somente alimentar populismos.