Só quem passa ou passou pela experiência da cegueira sabe como é inquietante não ver nada, não distinguir contornos nem cores, não saber como é a luz do dia nem conhecer as estrelas da noite, não poder ver a cara dos que ama nem o sorriso de um pai ou de um filho. Muito menos um desenho feito por ele, com amor. Amanhecer e anoitecer são abstracções mais ou menos sensoriais. O mar é um mistério profundo que apenas se pode sentir escutando-o, tocando-o ou mergulhando nele. Ruas, avenidas, estradas e passeios são conceitos aprendidos à custa de passos criteriosamente estudados e medidos entre muitos obstáculos. Semáforos são uma ajuda, mas só quando têm som, porque os outros passam despercebidos ou são tropeços entre o vaivém ensurdecedor de carros e autocarros. Perder a visão pode ser muito assustador. Aterrador, mesmo.

Quem vê e sempre viu nem se apercebe do que é não ver nada. Passa ao lado de uma realidade dura e adversa. Há, até, quem se atreva a dar passos para evitar cruzar o caminho de um cego. Vi isso uma vez numa plataforma de comboios. Eu estava de carro, presa numa fila de transito na estrada que fica num nível mais abaixo da estação, e vi esta cena: um cego de passos prudentes e queixo levantado, interrogativo, como que à procura de alguém, a varrer o ar à direita e à esquerda com a sua bengala, tentando encontrar o ponto certo para atravessar a linha do comboio. Avançava devagar, com passos cada vez mais hesitantes, mas não viu um homem em sentido contrário fintando em silêncio a sua bengala e afastando o corpo para passar ao lado sem dizer uma palavra. Só para não ter que o ajudar. O homem fez isso por ser a única pessoa naquela plataforma para além do cego, e certamente seguro de que ninguém o veria. O cego não viu, realmente, mas tenho a certeza de que soube que alguém passou por ele e o evitou. Eu confesso que nunca tinha assistido a nada tão chocante que envolvesse um cego. Nunca esperei um gesto tão cobarde de alguém que só por saber que vê sem ser visto, opta por desviar o caminho e passar ao largo. Mesmo sabendo que o cego estava a tentar atravessar uma linha de comboio.

Vi toda a cena sentindo-me impotente para ajudar, pois estava enfiada num carro, refém do trânsito, na estrada que corre paralela ao rio Tejo, perto de Alcântara. Nem eu nem os que viram o que eu vi, pudemos ajudar aquele cego. E ele ali continuou às cegas, naquele filme mudo, numa solidão incrível que continuei a ver enquanto pude, através do espelho retrovisor. Não cheguei a saber se foi ajudado porque acabou por desaparecer no meu horizonte.

Pouco tempo depois desta cena tristíssima conheci em Fontainebleau um dos fundadores da cadeia de restaurantes Dans Le Noir?, um conceito radical que hoje em dia já se estende a várias capitais da Europa, mas não só. Fiz um curso no INSEAD e o autor deste conceito radical era meu colega de turma. Explicou-me aquilo que muitos sabem porque já conhecem, já ouviram falar ou até já experimentaram, e se resume a ir a um restaurante onde só trabalham cegos e não se vê nada. Absloutamente nada. A ideia é essa mesma: proporcionar uma experiência de cegueira a pessoas que vêm. Soa inquietante e é realmente estranho, mas ajuda a ver a e perceber muita coisa. Nos restaurantes da cadeia Dans Le Noir? as pessoas chegam a uma zona ainda iluminada, onde são convidadas a deixar tudo o que brilha ou tenha luz. Relógios, telemóveis, tablets, porta-chaves com lanternas e afins, ficam guardados na recepção. Depois de serem simpaticamente despojadas destes objectos, as pessoas são conduzidas para uma zona de penumbra que antecede a escuridão total. Pousando a mão no ombro dos empregados do restaurante, seguem em confiança. A partir do momento em que entram no escuro total, a confiança tem que ser radical.

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Tal como num restaurante comum, são encaminhados para mesas num espaço onde há mais mesas e onde outras pessoas já estão sentadas a conversar, a comer ou à espera de serem servidas. A estranheza começa por estarmos num lugar onde não se vê rigorosamente nada, mas onde se ouve e percebe absolutamente tudo. Sem nos fazerem tropeçar, com uma arte e uma gentileza admiráveis, os empregados sentam-nos à mesa e perguntam o que queremos tomar. E anotam. Ou memorizam, para ser mais exacta. Discretamente desaparecem de cena, deixando-nos na mesa, como fazem todos os empregados em todos os restaurantes do mundo. E nós olhamos à volta, tentando ver alguma coisa, fazendo um esforço enorme para descobrir o menor brilho, um vestígio de luz ou o contorno de qualquer coisa. E nada. Uma escuridão total e completa. Então começamos a usar os outros sentidos e percorremos a mesa como os dedos para a sentir e definir o seu tamanho, tentando perceber onde acaba, e agitamos os braços como náufragos, como se estivéssemos a nadar no ar, fazendo gestos absurdos se fossem vistos à luz, tentando encontrar e segurar a mão de quem nos acompanha. Há um susto inicial que faz disparar o coração e acelera a respiração. Tentamos ficar calmos e proceder com naturalidade. Fazemos caretas que ninguém vê, torcemos o pescoço e olhamos indiscretamente para todos os lados. Não vemos, mas sabemos que também não somos vistos e isso dá-nos alguma tranquilidade e até margem para sermos como as crianças curiosas que olham em todas as direcções e revistam lugares e pessoas de alto a baixo. Não se vê nada e nenhuma luz vai voltar nas próximas horas e, por isso, o melhor é habituarmo-nos. Começamos a entrar no espírito, rimos dos nossos medos e, devagar, volta uma certa calma. As coisas melhoram quando nos trazem as bebidas e enunciam os pratos do dia.

A escolha por sugestão do empregado cego, ou por vontade própria, é sempre um momento alto. Escolhemos. Voltamos a ficar sozinhos enquanto nas outras mesas se ouvem vozes descombinadas, risos, gargalhadas, barulho de talheres e copos. Nada ali parece diferente do mundo lá fora, excepto na escuridão. Alguns conversam, outros namoram, grupos de amigos fazem brindes e há quem se levante e passe entre as mesas com aparente desembaraço para ir à casa de banho, que é em si mesmo outra experiência de confiança total.

Os empregados vão e voltam com passos leves e firmes. Pousam e levantam copos e pratos com extraordinária facilidade enquanto nós, ainda meio atordoados pelo escuro e tocados pela descontração do ambiente, começamos a aterrar ali e a conseguir conversar com naturalidade entre as entradas e o resto. Neste restaurante só trabalham cegos e é espantoso o que pessoas invisuais conseguem fazer num espaço como este, onde a decoração é o menor dos problemas. E quem diz a decoração, diz a cor das toalhas, o design dos pratos e tudo o que habitualmente nos faz escolher ambientes e criar tendências. Ali o que nos puxa e prende é podermos estar atentos ao essencial. Ouvir o outro, escutar o que nos diz, conversar, sentir a proximidade dos que estão à nossa volta e, acima de tudo, confiar. Confiar que o prato está bem cozinhado e devidamente servido; que o vinho é aquele que pedimos; a salada está bem lavada; a carne vem médio-mal passada e o peixe no ponto. Confiar que mesmo sem luz absolutamente nenhuma conseguiremos ver o essencial. E realmente vemos. Quando descontraímos e nos deixamos ir, quando finalmente baixamos as defesas e aceitamos a escuridão total, passamos a ver melhor. É inexplicável, mas é mesmo assim. E é por isso que aquela sensação inquietante que nos assalta ao início e nos faz querer fugir (podemos assumir isso sem problema, acho eu), se atenua à medida que o tempo passa e a refeição avança, seguindo o seu ritmo natural.

Muita coisa acontece no coração e atravessa o pensamento enquanto dura esta experiência de cegueira, mas uma é comum a todos: ninguém sai daquele restaurante igual. Ninguém sai como entrou, quero dizer.

À saída, a luz cega-nos e as pessoas parecem-nos subitamente estranhas. Ver outra vez a cara das pessoas, a maneira como estão vestidas e como se comportam parece esquisito. Por breves segundos quase apetece ficar na experiência do essencial que é essa confiança radical.

Vem tudo isto a propósito do ISOLEARN um encontro recente que reuniu universitários cegos e surdos na Gulbenkian, mas também um grupo consistente de especialistas em ensino especial, empreendedorismo e inclusão social. Tratava-se de discutir as questões que têm a ver com um ensino superior de maior qualidade e mais inclusivo, e durante um dia inteiro foram analisados estudos, estatísticas e dados relativos à realidade nacional. Estive lá e ouvi tudo com atenção. Senti o embaraço que muitos sentiram ao ver projectados num ecrã gigante os números baixíssimos de jovens cegos e surdos que chegam às universidades. Que vergonha viver num país que não se preocupa com estes jovens. Que desgosto ver que as políticas dos políticos nunca os elegem como prioridade imediata. Que drama nunca nada ser feito a pensar neles, naquilo que é mais urgente e mais mais falta lhes faz.

Tomando como exemplo os jovens universitários que estiveram na Gulbenkian e os testemunhos que deram, conseguindo falar com leveza e humor de situações pesadas e nada divertidas, recordo os exemplos da rapariga de Medicina e do rapaz cego que estuda Direito e já sabe muito sobre leis, mas nunca foi ao cinema nem viu os Óscares esta semana. Não sabe como é a cara do Leonardo DiCaprio nem como conseguiu sobreviver no filme que finalmente lhe deu o Óscar. Este e outros rapazes e raparigas chegam às universidades depois de anos a penar em escolas secundárias, muitos deles sem outros apoios para além da família, dos amigos, dos bons professores e daquelas senhoras mais queridas que há sempre nos serviços administrativos e se compadecem com a falta de ajudas e subsídios.

Na Universidade, seja ela qual for, raramente encontram manuais, sebentas e material de estudo compatível com a maneira como aprendem. Muitos deles são pioneiros porque chegam a faculdades onde nunca houve nenhum cego antes deles, e isso obriga os serviços, mas também alguns professores, a descerem do pedestal das suas cátedras para inovarem e inaugurarem novos métodos pedagógicos. O problema é que nem todos colaboram, e mesmo os que ajudam sabem que tudo isto demora eternidades e cria uma erosão interior brutal nos alunos. A esmagadora maioria dos jovens invisuais não dispõe de materiais de estudo em formato digital que possam depois ser convertidos por programas de computador que verbalizam ficheiros e lhes permitem copiar, editar, sublinhar, ‘ver’ e tornar a rever as matérias. A verdade nua e crua é que nas universidades quase não há respostas para cegos. E por isso é que não há lá cegos. Os invisuais são postos de lado à partida e vêm-se ‘às aranhas’ (eles dizem ‘às aranhas’ quando nós dizemos ‘às cegas’) para conseguirem cumprir o que lhes é academicamente exigido. Ser cego e ter uma licenciatura, Mestrado ou Doutoramento é uma verdadeira proeza olímpica. Alguns conseguem, mas muitos desistem. Ou nem tentam. E é pena.

Nós, os que vemos, devíamos olhar para esta realidade com outros olhos. E fazer as mesmas manifestações, debates e petições que fazemos por outras causas, a exigir medidas imediatas de apoio a estes e outros jovens. Hoje falei dos cegos, mas a realidade dos surdos é ainda pior porque gera mais exclusão e, por isso mesmo, carece de uma atenção ultra especializada que implica custos com tradutores de língua gestual, entre outras exigências imperativas de sobrevivência. Estes jovens não podem ficar fora do sistema educativo. Nem podem continuar a viver dependentes do amor e boa vontade de mães, pais, amigos, colegas, professores e senhoras queridas da secretaria que voluntariamente se dispõem a ficar horas a fio, noite após noite, a digitalizar, folha por folha, séries inteiras de manuais que podem chegar a ter 600 páginas. Todos os jovens com necessidades especiais deviam ter o acesso ao ensino facilitado, seja em questões de acessibilidades ou materiais de estudo. E todos devíamos fazer, pelo menos uma vez na vida, uma experiência de cegueira para percebermos alguns básicos essenciais. Enquanto tratarmos os nossos invisuais como se não existissem, ou não tivessem necessidades especiais, estamos a dar corpo ao manifesto popular que diz que o pior cego é aquele que não quer ver.