Rasputin é uma das improváveis figuras que acompanha as aventuras de Corto Maltese, o herói das pranchas de BD de Hugo Pratt. Esta personagem russa é física e homonimamente inspirada no sinistro místico que gravitava a corte de Nicolau II. Com Pratt, surge-nos um sociopata inteligente que tem na provocação uma espécie de conduta para as suas andanças. E é na óbvia reacção dos provocados que Rasputin justifica a sua agressividade, o meio mais eficaz para a sua desmesurada ambição: faz o que quiseres, mas no dia em que te matar, não será com uma espingarda, as minhas mãos bastarão…, disse Rasputin a Corto Maltese na “Balada do Mar Salgado”.

Tendo então como mote estes peculiares cavalheiros da fortuna, podemos agora analisar as recentes movimentações russas no teatro europeu. Putin não é Rasputin, claro está. Porém, em planos diferentes, ambos têm em comum a provocação como estratégia para justificar uma agressividade que, em si, surge como meio mais eficaz para uma ambição desmesurada.

Ao longo de década e meia, a Rússia passou de inimigo a parceiro estratégico, numa confiança que, de armada, passou a cooperativa. Se lermos Pratt, vemos aqui a relação-tipo entre Rasputin e Corto. Mas, é durante o segundo mandato como presidente (2004-2008) que Vladimir Putin assume a sua verdadeira intenção no plano internacional, isto é, recuperar o espaço soviético perdido. A Rússia deveria voltar a ser um dos actores principais do palco geopolítico. Assim, a primeira grande provocação à lá Rasputin acontece durante a “Guerra dos Cinco Dias” – a ofensiva russa sobre a Geórgia, em Agosto de 2008. O Ocidente, isto é NATO e UE, para além da mediação do cessar-fogo, pouco ou nada fez. Ou seja, o teste de esforço à reacção euro-atlântica tinha sido positivo para as intenções de Putin.

A segunda grande provocação aconteceu este ano aquando da crise na Ucrânia. Com uma estratégia mais apurada, e a longo prazo, Putin semeou o caos ao provocar os ucranianos, para, na sua reacção, afastá-los do apoio ocidental. A permanente possibilidade de invasão põe em causa Estados mais fragilizados, levando a reacções internas não controladas que depois acabam por justificar a ingerência de Estados mais poderosos – uma velha táctica de grandes potências.

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Putin quer subordinar sem invadir, e provoca para, caso seja necessário, poder intervir com legitimidade. Além do mais, há ainda a possibilidade de, em nome da estabilidade, o Ocidente progressivamente pressionar Kiev a ceder a Moscovo para que as nossas “boas relações” se mantenham. Putin, o provocador, tem o jogo na mão. Aliás, surgiu-nos na “Forbes”, pelo segundo ano consecutivo, como a pessoa mais poderosa do mundo, ultrapassando Barack Obama.

Mas toda esta estratégica ainda poderá ser reversível.

Em primeiro, há que encarar a realidade factual para além da dependência negocial, económica e energética. É preciso reconhecer Putin como um agressor. Depois da tal provocação, intimidou, invadiu a Ucrânia e ocupou uma parte do seu território. Em 1938, o anschluss foi um desafio de Hitler às democracias ocidentais, cuja anuência apaziguadora preparou caminho para outras ocupações germânicas. A história nunca se repete, mas rima, dizia Mark Twain.

Em segundo, o Ocidente deve repudiar com veemência a suposta legitimidade da ocupação russa na Crimeia. Para além disso, as dinâmicas internas que criaram governos soberanos nas regiões separatistas, também não deverão ter reconhecimento oficial. Na verdade, apenas o esforço militar poderá trazer de volta ao Estado ucraniano estes territórios rebeldes de Leste. Houve cessar-fogo, mas os combates ainda continuam. E note-se que a capacidade das forças armadas da Ucrânia deixa muito a desejar, o que nos leva ao ponto seguinte.

Em terceiro, é preciso dizer que um apoio mais efectivo em termos militares no momento inicial da crise por parte dos países NATO teria alterado o rumo da crise da Ucrânia. Não aconteceu, e Putin não teve qualquer dissuasão à sua provocação. Agora, perante este contexto, e perspectivando um futuro próximo, não é despropositada a integração deste país na NATO. Tal não irá resolver a crise, é certo. Porém, pode ser um óbice à estratégia de Putin, que prevê a alteração das actuais fronteiras russas e europeias. É uma resposta mais musculada ao anschluss, que já devia ter sido dada. Putin vai continuar este jogo de provocação e ocupação.

Dou-te exactamente dez segundos para me deixares em paz, Rasputin…, disse Corto Maltese (“Na Sibéria”). Rasputin não deixou, e foi agredido. A boa relação entre estes dois cavalheiros da fortuna mantinha-se precisamente por isto.

Professor Universitário; Porta-Voz do OSCOT