Na passada sexta-feira, 10 de Maio, tive o grato privilégio de receber do Embaixador do Reino Unido em Lisboa, HE Christopher Sainty, uma muito honrosa distinção atribuída pela Coroa britânica. Tratando-se de um tema que tem alguma dimensão pessoal, hesitei bastante antes de decidir abordá-lo aqui. Mas existe uma dimensão mais vasta e mais funda que não posso, em consciência, deixar de referir. Trata-se de recordar aquilo que o Reino Unido tem representado na história política europeia e mundial.

Este tema tem sido por vezes obscurecido pela recente novela do “Brexit” — embora deva ser reconhecido que a hostilidade anti-britânica no continente europeu, e sobretudo em Portugal, tem sido até agora relativamente moderada. Em contrapartida, na nossa cultura política nacional, receio ter existido e continuar a existir  uma certa ambivalência em relação à nossa “relação especial” com o Reino Unido — uma relação que está na base da mais antiga aliança bilateral do mundo, consagrada no Tratado de Windsor de 1386.

Não se trata de ocultar ou de esquecer as tensões que a aliança luso-britânica certamente atravessou. Todas as relações enfrentam momentos menos felizes. Não seria de esperar que esses momentos não existissem numa relação com mais de 600 anos. O que é notável é que a aliança luso-britânica tenha sobrevivido durante tantos séculos, apesar das expectáveis tensões e momentos menos felizes.

Uma primeira incontornável dimensão da aliança luso-britânica reside na natureza marítima dos dois países. Não é aqui possível resumir a imensa literatura existente sobre as diferenças entre culturas políticas marítimas e continentais. Mas vale a pena recordar que Karl Popper, na seu marcante livro de 1945 sobre A Sociedade Aberta e os seus inimigos, associou a democracia comercial ateniense de século V a.C. ao seu carácter marítimo — e a ditadura colectivista de Esparta ao seu carácter continental.

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Este tema era caro a Winston Churchill, que tinha uma visão algo romanceada da história britânica — o que terá sido um factor decisivo para se opor à aliança nazi-comunista emergente na década de 1930 e finalmente selada em 1939. Na verdade e em rigor, na década de 1930, qualquer simples cálculo racional apontava para que a oposição à aliança nazi-comunista estava destinada ao fracasso. Mas Churchill apelou à resistência com base em argumentos sobretudo morais. Num célebre discurso a 9 de Maio de 1938, ainda antes do início da II Guerra, disse Churchill:

“Não temos nós uma ideologia — se tivermos de usar essa horrível palavra, ideologia, — não temos nós uma ideologia própria na liberdade, numa Constituição liberal, na democracia e no governo parlamentar, na Magna Carta e na Petição de Direitos?”

Churchill entendia a história britânica na tradição Whig que o grande historiador Lord Macaulay tinha consagrado: a história de uma distintiva defesa da liberdade e de uma evolução gradual, alérgica a revoluções e contra-revoluções. Na resistência inglesa à Invencível Armada, a Luís XIV, a Napoleão, ao Kaiser, a Hitler e a Staline, Churchill via uma linha de continuidade na defesa da liberdade ordeira britânica.

Mas é importante recordar que Churchill não via essa tradição da liberdade britânica como exterior à tradição europeia, muito menos como oposta a ela. Pelo contrário, Churchill sempre entendeu a cultura política inglesa como parte integrante da civilização europeia e ocidental, fundada nos princípios da liberdade e responsabilidade pessoal, e enraizada em Atenas, Roma e Jerusalém.

Churchill simplesmente acreditava na especificidade da contribuição britânica, bem como dos povos de língua inglesa, para a civilização europeia e ocidental. Quando, a 6 de Setembro de 1943, recebeu um doutoramento honorário da Universidade de Harvard, Churchill descreveu essa especificidade dos povos de língua inglesa de forma particularmente tocante:

“A lei, a língua, a literatura — estes são factores consideráveis. Concepções comuns sobre o que é certo e decente, uma preocupação marcante com fair play, especialmente em relação aos fracos e aos pobres, um forte sentimento de justiça imparcial, e acima de tudo o amor pela liberdade pessoal. […] Se estivermos juntos, nada é impossível. Se estivermos divididos, tudo irá fracassar. É por isso que eu defendo continuamente a doutrina da associação fraternal dos nossos dois povos… pelo serviço à humanidade e pela honra que advém aqueles que servem grandes causas.”

Esta ideia de relação especial anglo-americana e euro-atlântica esteve na base da criação da NATO — cujo 70º aniversário celebramos este ano, e celebraremos na próxima 27ª edição do Estoril Political Forum, com a presença de Randolph Churchill, bisneto de Sir Winston.

Mas estes valores ficaram inesquecivelmente evidenciados num pequeníssimo episódio do ano 1940 (quando Churchill foi nomeado primeiro-ministro, a 10 de Maio, e passou a liderar a resistência britânica e europeia ao nazismo). Nos Arquivos Churchill, em Cambridge, existe uma única carta a ele dirigida por sua mulher, Clementine, em todo o ano de 1940. Nessa carta, Clementine critica-o pela “deterioração das maneiras no tratamento dos secretários privados”.

É quase inacreditável que, num momento tão dramático e perigoso na vida da nação, a mulher do primeiro-ministro britânico lhe tenha escrito uma única carta para… o criticar por não ser suficientemente educado com os seus secretários. Mas é factualmente verdade e pode ser comprovado nos Arquivos.

É um pequeníssimo episódio que nos ensina uma grande lição sobre aquilo que Lord Macaulay chamava de Civility, ou a complexa associação entre liberdade e sentido de dever. Foi este sentido de Civilidade da cultura política britânica e dos povos de língua inglesa que eu fui ensinado a admirar, desde criança,  em casa de meus pais e de minhas avós — sem que esse privilégio tivesse requerido qualquer mérito da minha parte.