A política tem destas ironias. Rio tinha razão. Portugal necessitava, não apenas nos anos que passaram, mas nos anos vindouros, que os dois maiores partidos nacionais que ainda conseguem ter uma maioria qualificada, se entendessem sobre algumas reformas fundamentais quer para a melhoria do sistema político quer para o desenvolvimento económico e social país. Há obviamente muito maior proximidade entre PS e PSD nestas matérias do que entre PS, BE e PCP. Acordos de regime entre os partidos do centro, não implicam governos de bloco central. Costa poderia, com a habilidade que lhe é reconhecida, manter o diálogo preferencial com a esquerda que deseja, mas assumir claramente que, para certas reformas e certas orientações estratégicas, está mais próximo do PSD do que dos partidos à esquerda do PS. Pensemos no exemplo do Orçamento de Estado (OE). À exceção do imposto Mortágua (adicional ao IMI) não me recordo de nenhuma medida de aumento de receita proposto pelo PCP ou BE. O que existe tipicamente em sede de OE são propostas de aumento de despesa ou diminuição de receita. Sustentabilidade das contas públicas, restrição orçamental ou justiça intergeracional não fazem parte do léxico do BE e PCP, mas fazem de PS e PSD. Para o OE2022 o PCP reivindica aumento generalizado das pensões (não apenas as mais baixas), aumento dos salários da função pública, reforço do SNS, mais creches gratuitas, alívio fiscal para rendimentos baixos e intermédios, etc. O Bloco apresenta como uma das suas linhas vermelhas a abolição do factor de sustentabilidade para quem tenha mais de 40 anos de descontos. É fácil perceber que a aceitação de todas as propostas de PCP e BE levariam ao disparar do défice e da dívida pública.
Costa fechou a porta a Rio em quase tudo. Não teve razão. Sem estratégia viável reformadora ao centro, é agora a vez de Rangel bater com a porta a Rio. Rangel tem todas as condições para vencer as diretas pois já se percebeu que conseguiu federar as várias fações muito diversas do PSD. Pelo seu espírito combativo, densidade ideológica e vontade de agregar o PSD, Rangel terá decerto um muito melhor resultado eleitoral para o PSD que Rui Rio. Paradoxalmente, Rangel irá movimentar o PSD mais para a direita e tornar ainda mais difíceis as reformas que o país necessita. Se no PSD as coisas ficarão clarificadas a 4 de Dezembro, à esquerda reina alguma incerteza. Estou convencido que o Orçamento de Estado vai passar, mas há riscos. O BE apresentou, e bem do seu ponto de vista, a exigência de um acordo escrito com António Costa para viabilizar este orçamento. Um acordo que deveria ser para o resto da legislatura. Haverá condições para tal acordo? É complicado, mas a exigência é clarificadora. O PCP já disse, em tempos, pela boca de Jerónimo de Sousa, que não quer acordos, mas discutir medidas em concreto. Em teoria será pois mais fácil passar o OE com o PCP do que com o Bloco. Pelas minhas contas existe uma pequena margem (cerca de duas décimas do PIB) para a negociação à esquerda, que resulta essencialmente deste OE ter uma boa estimativa das despesas (salários e pensões), mas uma ligeira sub-orçamentação de receita em sede de IRS. Será que tal é suficiente para acomodar as exigências de BE e PCP? É óbvio que não, pelo que esse eventual acordo envolverá também matérias extra-orçamentais e concessões do PS no terreno laboral. A questão é saber qual o preço a pagar pelo país, por um eventual acordo, escrito ou não escrito, com os partidos de esquerda que, se for substancial, irá sempre no sentido de uma maior rigidez laboral e de uma insustentabilidade das finanças públicas.
Finalmente, temos o cenário de não acordo e de crise política associado à não aprovação do orçamento que, não sendo provável, pode acontecer. Isto atrasaria todo o processo de recuperação económica e de utilização dos fundos europeus. PCP e BE, derrotados nas autárquicas, podem ter a ilusão de que podem ficar melhor com eleições, sobretudo se não forem vistos como responsáveis pela crise. Com o chumbo do orçamento e eleições no início do ano, a fazer fé nas palavras de Marcelo, provavelmente o PS ganharia, sem maioria absoluta, e a principal novidade seria a subida do Chega e a quase extinção do CDS, caso concorresse sozinho. Estas pequenas alterações no xadrez político nacional só piorariam a governabilidade do país.