As palavras são armas fundamentais de combate em questões de saúde mental. São, no entanto, uma responsabilidade. Têm um peso. Um peso que pode ser muito positivo ou muito negativo. As palavras podem salvar quem as escreve, quem as diz, quem as lê ou quem as ouve, mas podem também fazer parte do problema e ser armas mortíferas para quem enfrenta uma luta diária contra um inimigo invisível aos olhos de todos, sem forma física, sem cheiro, sem cor, sem som, mas muito real para quem o combate.

Desde que me lembro de existir sofro, mas também desde que me lembro de existir escrevo. Já escrevia antes de saber escrever, porque a escrita é a minha forma de sobreviver. Ditava frases e versos aos meus avós para conseguir aliviar um pouco do que vivia intensamente na minha cabeça.

Aprender a escrever aos seis anos foi a minha salvação, a minha arma de arremesso contra uma nuvem negra que não conseguia bem compreender, mas que, por mais que tentasse afastar, acompanhava-me sempre para todo o lado onde ia naqueles anos de felicidade inabalável da infância. Já nessa altura vivia muito interiormente. Se tivesse lido Pessoa teria conseguido explicar que era exatamente aquilo que sentia, uma forte dor insistente de pensar. Tinha longas conversas com os meus pensamentos constantes, intrusivos e obsessivos.

Nunca conseguia apenas viver as sensações físicas e felizes da infância. Já todos nos deitámos na relva a observar as diferentes formas das nuvens. Também eu o fazia e fui fazendo à medida que crescia. Fui crescendo e vendo formas diversas, mas as nuvens eram sempre negras.

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A escrita é a minha terapia, o meu porto seguro. Não sei viver sem escrever. Ao passar para palavras as diferentes nuvens que foram pairando sobre mim conseguia respirar um pouco, sentir-me menos sufocada, aliviar a minha dor de pensar. Quando aos dezanove anos a depressão me tirou o chão, a escrita foi muitas vezes a minha única salvação, a única maneira pela qual conseguia ter um pouco de esperança, um pouco mais de força para me levantar da cama, para colocar a minha máscara social e seguir o meu dia a fingir que estava tudo bem. Em articulação com ajuda psicológica e psiquiátrica, as palavras salvaram-me através da escrita.

Mas a palavra tanto pode ser um curativo, um remédio, um pó para colorir de branco as nuvens negras, como pode também ser uma perigosa arma. Isto porque, quando dizemos algo, não o fazemos para o vazio: dizemos algo a alguém. Há sempre alguém que vai receber a palavra, que vai receber aquilo que estamos a dizer.

As doenças mentais têm a particularidade de não ser visíveis, não nos provocam feridas físicas que possamos mostrar ao mundo, portanto nunca sabemos o que se passa na vida das pessoas, nunca sabemos se aquilo que estamos a dizer pode estar a afetar profundamente a vida de alguém. Num tempo em que é tão banal destilar ódio, em que toda a gente tem sempre comentários sobre tudo e sobre todos, falta-nos muito ter o outro em conta ao usarmos a palavra, falta-nos muito perceber que somos todos pessoas diferentes, com sensibilidades diferentes e, portanto, aquilo que dizemos pode ser decisivo na vida de alguém, quer positivamente, quer negativamente.

Muitas vezes, um simples “nunca apareces” ou um “estás sempre em casa” pode magoar, porque não sabemos se aquela pessoa simplesmente não se sente capaz de estar em ambientes sociais ou fora de casa. Não sabemos se aquela pessoa que naquele momento está ali a rir à gargalhada no café, que aparenta aos nossos olhos ter uma vida dita normal, não está na verdade destruída por dentro, não está a fazer um esforço sobrenatural para ali estar.

Ainda hoje, mesmo estando a ser acompanhada, ( e relembrando que a saúde mental é uma batalha diária), a minha síndrome ansiosa não me permite simplesmente disfrutar de qualquer convívio. No entanto, não há nada em mim que diga que as interações sociais podem desencadear um ataque de pânico a qualquer momento; que tenho de estar permanentemente a repetir baixinho “está tudo bem”; que não estou a cerrar os punhos com força porque me apetece, mas sim porque é uma forma de desviar o foco da mente por alguns segundos; que estar ali sem um ansiolítico é já uma conquista. Nada disto se vê e nesses momentos um “nunca apareces” pode destruir.

Usemos as palavras como poderosos aliados da Saúde Mental. Quer pela escrita, quer pela conversa, quer pela leitura, as palavras podem salvar, podem dar alguma luz a quem não vê qualquer saída.

Uma mensagem a dizer “se precisares de alguma coisa estou aqui”, pode salvar uma vida. Um “como estás?” pode fazer com que alguém, pelo menos nesse momento, não se sinta sozinho.

É essencial estarmos atentos aos nossos amigos, à nossa família, a todos os que nos rodeiam e a palavra é o veículo que nos permite transmitir-lhes que estamos aqui, que não fomos a lado nenhum, que se caírem lá estaremos para os levantar, que não faz mal que não apareçam, que se sintam melhores em casa, mas que estaremos cá quando quiserem sair, que não faz mal já não terem capacidade para conviver como conviviam antes, que aceitamos e queremos ajudar, que o importante é que estejam bem.

Maria Ganhão Pereira, licenciada em Economia pelo ISCTE-IUL, é mestranda em Marketing e autora dos livros Quando o Céu não é Estrelado (ed. Colibri, 2015) e Diálogos com a Mente (ed. Colibri, 2022).

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

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