De uma mulher que vê o marido ser assassinado, esperam-se manifestações de cólera e revolta. De uma mulher que é cúmplice da morte do marido, conta-se que simule essas reacções, a fim de passar impune.

Para Maria Stuart, da infância na corte francesa ao cativeiro em Inglaterra, a morte do marido e rei consorte é o clímax da sua vida. A rainha da Escócia sempre se mostrou hábil a escapar às polémicas, perspicaz a influenciar as elites e sedutora com o povo. Mas quando Bothwell, um nobre escocês, cometeu o regicídio que a fez viúva pela segunda vez, Maria Stuart não se insurgiu para que procurassem os suspeitos, nem derramou lágrimas de crocodilo. Em vez disso, seguiu com a sua rotina, assomou alegre à janela e passeou pacatamente pelos campos.

Durante esta legislatura, António Costa mostrou desenvoltura a demarcar-se dos casos e prontidão a apontar o dedo. Alexandra Reis foi posta fora mal se soube que tinha embolsado meio milhão de euros da TAP e, para Costa, “não há dúvidas de que a ex-secretária de Estado violou o estatuto do gestor público”. Assim que se soube da contratação de Rita Marques para uma empresa privada que costumava tutelar, Costa apressou-se a apontar que, com “99,9% de certezas, ela cometeu uma ilegalidade”. Também a demissão de Pedro Nuno Santos pareceu naturalíssima a Costa, logo que se demonstrou que o secretário de Estado “tinha conhecimento da indemnização”. Mesmo Carla Alves, nomeada de fresco, foi celeremente descartada, mal Marcelo fez ver a Costa que o contrário poderia afectar politicamente o Governo.

Nesta senda de episódios degradantes, Costa não cedeu espaço à indulgência, e, mesmo sem a justiça provar nada, despachou-se a soltar as garras para julgar politicamente os protagonistas dos escândalos. Excepto por três vezes, em que o não fez.

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Há cerca de um ano, veio a público a denúncia sobre um adiantamento duvidoso de 300 mil euros a um empresário, para a construção de um pavilhão que não chegou a sair do papel. Essa ordem tinha sido dada por Miguel Alves, enquanto presidente da Câmara de Caminha, antes de ser promovido a secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro. Uma vez ofuscado pelos holofotes da polémica, Costa foi incapaz de condenar politicamente este seu colaborador.

Em Abril, armou-se uma batalha campal no Ministério das Infraestruturas. Houve membros do governo a servirem-se de organismos policiais independentes, a perseguirem assessores e a esconderem documentos. Mas apesar da vontade expressa do Presidente da República para que o ministro responsável fosse substituído, Costa deu o peito às balas por João Galamba e manteve-o no governo. Foi uma decisão tão incompreensível, que houve mesmo quem a justificasse com um alegado fetiche de Costa em sobrepor-se à vontade de Marcelo. Deve ter sido isso…

No dia em que dá uma conferência de imprensa a anunciar a demissão, Costa vê Vítor Escária e Lacerda Machado – dois colaboradores directos e amigos íntimos – serem detidos, mas decide não tecer uma única palavra sobre qualquer um dos dois.

Maria Stuart e António Costa sempre deram provas de excelência a lidar com casos polémicos. Mas quando Bothwell matou o rei, a rainha da Escócia não conseguiu fingir um luto que a afastasse da suspeição do seu envolvimento no crime. Quando Miguel Alves foi descoberto, João Galamba apanhado a abusar do poder e Vítor Escária e Lacerda Machado detidos, o primeiro-ministro de Portugal não agiu a tempo para se descolar dos escândalos.

Independentemente de ter havido ou não envolvimento directo de Costa nestes episódios, não deixa de estar presente o quadro patológico do cúmplice que a história da criminologia sempre retratou: a quem empenha as energias na conivência de um crime, logo lhe faltam as forças para se demarcar dele.

O jornalismo português e o Ministério Público, tal como o povo da Escócia no século XVI, começaram por denunciar os crimes através de quem os executou – de quem disparou o canhão sobre a casa onde dormia o rei, de quem assinou o contrato que empobreceu o povo de Caminha, de quem chamou o SIS para o Ministério das Infraestruturas, de quem pôs um dedo que não devia em negócios de data centers, hidrogénio e lítio.

Aos que sabiam do crime desde o início sem terem precisado de sujar as mãos, tramaram-nos sempre a imprudência dos próprios, a inércia das suas reacções, os pruridos em demarcarem-se do executor. Por cá, seja Costa condenado ou ilibado, esse dia traiçoeiro já chegou.

Mais de um mês depois de Miguel Alves deixar o governo pelo próprio pé, gritou Ana Catarina Mendes às gentes do Minho: “Ser socialista é isto mesmo. É sermos solidários (…) O Miguel [Alves] deu muito de si à causa pública”. Suceda o que suceder, pelo menos já nos explicaram que “ser socialista é isto mesmo”. A nós – portugueses – dá-nos jeito saber.