Em Lisboa, a fachada da igreja de São Roque está há dias coberta por uma faixa com a imagem cinematográfica de Cristóvão Ferreira. É a medida do sucesso de Silêncio, o filme de Martin Scorsese, mas também uma estranha ironia. Ferreira representou para os seus contemporâneos a negação da fé. Quatro séculos depois, o apóstata está nas parede de uma igreja, como outrora os mártires, e é a propósito dele que se fala de religião. A apostasia inspira hoje mais do que a santidade?

Este é assunto do livro de Shusaku Endo, o escritor católico japonês que inspirou Scorsese. Muitos já falaram do filme, falarei aqui do livro. A leitura de Silêncio, publicado em 1966, poupa-nos a algumas discussões provocadas pelo filme. O livro não é um romance histórico sobre a descristinização do Japão no século XVII, mas uma alegoria sobre a recristianização das sociedades modernas. Também não é uma história da perda da fé, mas do seu reencontro.

O silêncio do título não se refere apenas ao “silêncio de Deus”. O primeiro e o último silêncio que encontramos não é, aliás, o de Deus, mas o do crente. Para começar, o silêncio do guia japonês que os missionários recrutam em Macau: Kichijiro, bêbado e cobarde, cala-se sobre a sua fé e recusa-se a confirmar que é cristão. Para o missionário Sebastião Rodrigues, Kichijiro é a negação de tudo o que ele pretende ser e que um cristão deve ser. Rodrigues aspira ao martírio, isto é, à “glória”; Kichijiro quer apenas salvar a vida. Rodrigues afirma a sua fé e vai anunciá-la aos outros; Kichijiro cala-se e nega.

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Rodrigues identifica-se com Cristo e, muito naturalmente, compara Kichijiro a Judas. Ele é o herói, o guia é o seu traidor. Ele está próximo de Deus, o guia está afastado. Ele está salvo, o guia está perdido. Como seria previsível, esta é uma dicotomia para ser baralhada. Por fim, sob a perseguição e a tortura, também Rodrigues é reduzido a um apóstata, como Kichijiro. A questão muito explicitamente levantada pelo livro é esta: quando é que o padre Sebastião Rodrigues estava mais próximo de Deus? Quando pregava, quando se julgava um herói, um émulo de Cristo, convencido de que “Deus nunca nos dá provas que nós não consigamos superar”, ou quando, em silêncio, na abjecção e na dúvida, percebe que afinal não era melhor do que Kichijiro, e que também ele é um fraco, um Judas, um “anjo caído”?

Contra a salvação pela força, pela glória, pela fé e pelo impacto da palavra, o livro parece sugerir a possibilidade da salvação pela fraqueza, pela abjecção, pela dúvida, pelo silêncio. Porque só através da dúvida, o crente se poderia libertar do seu narcisismo, das suas pretensões, para finalmente se entregar e ser recebido por Deus. É na queda que o padre Rodrigues julga compreender o papel de Judas. Silêncio é, assim, mais uma “versão de Judas”, como as que Jorge Luís Borges reuniu em Ficções. E é a partir daqui que insinua a possibilidade de renascimento da fé numa era de descrença. Nada disto torna Silêncio menos discutível: apenas sugere que tem de ser discutido de outra maneira.

O romance tem, como é óbvio, mais portas de entrada. Lembra, por exemplo, Heart of Darkness de Joseph Conrad, outra novela em que o narrador parte da Europa para esclarecer rumores inquietantes sobre o colapso moral de um propagandista. Mr. Kurz é o Cristóvão Ferreira do humanismo progressista, o agente da “civilização” que finalmente perde confiança no progresso e opta por exterminar os “selvagens”. As ideias de Kurz sobre o absurdo de civilizar a África ecoam, aliás, no discurso de Ferreira sobre a impossibilidade de evangelizar o Japão (o “pântano”). O esforço da conversão pode levar ao relativismo, mas o relativismo não é necessariamente o caminho da tolerância, mas também o da desumanização.

Shusaku Endo estudou em França nos anos 50. As suas ideias correspondem às de escritores católicos de meados do século XX como Georges Bernanos ou Graham Greene, que aliás elogiou Silêncio. Talvez o seu cristianismo de anjos caídos, de apóstolos fracassados e de crentes sem poder, sobretudo na versão de Scorsese, possa parecer demasiado conveniente para uma época secularista, em que a religião é das poucas coisas que um Estado absorvente quer privatizar. Bastará ao cristianismo a devoção silenciosa dos fracos? Provavelmente, não. Mas bastaram-lhe, noutros séculos, as cerimónias ruidosas do poder?

A certa altura da novela, Kichijiro argumenta que também ele poderia ter sido um bom cristão, no tempo em que os cristãos eram protegidos pelos senhores feudais do Japão. Foi sempre fácil partilhar a fé dos poderosos. A partir deste tema, já uma vez Jean Delumeau contestou o conceito de “descristianização” (O Cristianismo vai morrer?, de 1977). Segundo Delumeau, havia de facto um cristianismo que estava a morrer: era o cristianismo do Estado, mas apenas para que renascesse o cristianismo dos crentes, isto é, da sociedade. Silêncio, no fundo, é sobre isto: o paradoxo da recristianização.