A IA mete-se connosco há algum tempo. É uma força inevitável com impacto diário na vida das pessoas. Com ela (e a partir dela) nós, seres humanos, aventuramo-nos a beneficiar de um mundo melhor. Fala-se muito do ChatGPT como expoente máximo do processamento de linguagem natural. Podemos também escolher interagir com a assistente Siri ou com a Alexa. Ligamos a nossa Smart TV e a Netflix recomenda-nos filmes e séries. Os algoritmos do Spotify sugerem-nos novas músicas. Se queremos viajar, questionamos o Booking ou o TripAdvisor sobre onde nos podemos acomodar. A HireVue automatiza o recrutamento de colaboradores. Bancos como o JPMorgan Chase ou o bureau SCHUFA preveem se seremos bons ou maus pagadores no crédito. O Bloomberg ou a Thomson Reuters ajudam-nos enquanto investidores. Já a Feedzai deteta atividades fraudulentas. A AXA fixa as apólices de seguro com base nos nossos comportamentos de risco. Alguns são já os modelos automóveis que nos proporcionam experiências de condução autónoma como o Tesla, o Uber ou a tecnologia Waymo. Na área da saúde, enquanto a GE Healthcare ajuda os médicos a diagnosticarem as nossas doenças, a Ada oferece-nos opiniões personalizadas e a Owkin sugere novos tratamentos. O Barça Innovation Hub recorre à analítica futebolística para melhorar as performances das suas equipas. Desta engenharia fazem uso outros clubes tanto nesta como em outras modalidades desportivas. Aliás, a Wyscout influencia a negociação de jogadores no mercado de transferência há vários anos. Num outro âmbito, a plataforma Examity vigia os alunos durante a realização de exames online. A polícia de Londres recorre a um software de reconhecimento facial ao vivo para conduzir investigações ou deter suspeitos da prática de crimes. O Serviço de Cidadania e Imigração dos EUA baseia as decisões de aquisição de nacionalidade em sistemas de recomendação.

Ora, todos estes exemplos ilustram o que é ser-se artificialmente inteligente. Em maior ou menor grau, todas as aplicações referidas raciocinam, aprendem e adaptam-se. Delas resultam decisões algorítmicas que não se reconduzem necessariamente à emulação de métodos biologicamente observáveis. Mas nem por isso deixam de ser inteligentes. Senão vejamos: se o avião não bate as asas para voar como os pássaros e o submarino não precisa de fazer uso de barbatanas para se movimentar na água, então também os modelos de aprendizagem não têm de ter consciência para serem inteligentes. Aqui, o território da ficção ou de um algoritmo-mestre definitivo causa-nos desconforto. Tendemos a desconfiar dos factos e das descobertas que gerariam em nós a convicção de pertença a uma comunidade de agentes naturais e artificiais. Recusamos ajustar-nos a um mundo novo que se pretende mais interligado, ágil, eficiente e objetivo. Não fruímos do impacto positivo que a Quarta Revolução pode ter sobre as famílias e nas organizações. Propalamos aderir aos ‘moinhos de vento’ que reduzem a IA à discriminação algorítmica e à desinformação. Preferimos ter um ser humano a fazer-nos mal deliberadamente do que uma IA a prejudicar-nos com razões opacas, mas que predizem o mundo tal como ele é. Com isto, escondemos estar sedentos de recuperar o controlo que tivemos outrora. Ousamos negar a superioridade das crias informáticas que nós próprios concebemos. Hoje, a IA reclama cada vez maior maturidade, autonomia e independência. Exige-se, portanto, a sua personificação jurídica.

E se, por um lado, é certo que nem todas as disrupções como esta são facilmente reguláveis, dado que a complexidade e a proteiformidade desta realidade invariavelmente acaba a cobrar a necessidade de atualização dos seus regimes legais, por outro, uma normatização tradicional ambígua, vaga e proibitiva como aquela vertida no artigo 22.º do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, no artigo 9.º da Carta Portuguesa de Direitos Humanos da Era Digital, aprovada pela Lei n.º 27/2021, de 17 de maio, ou até mesmo na Proposta de Regulamento IA, de 21 de abril de 2021, pode não resultar. Os dados da inovação podem já ser lançados, mas as regras do jogo ainda não se encontram bem definidas. É aos legisladores europeu e nacional a quem compete assegurar a gestação e o processo de evolução do Direito da IA. Porque a Ciência dos Dados já tem robustez científica suficiente para fornecer ao Direito dos Livros algumas respostas conciliáveis com os dilemas que este último lhe coloca. Podem estas é não ser expetáveis ou conformes aos quereres do universo jurídico.

Daqui decorre que a maturação de programas responsáveis, artificialmente inteligentes e, ainda assim, centrados no ser humano pode mesmo passar pela institucionalização da figura do Provador da IA. Seria deste Agente Humano – preferencialmente, possuidor de conhecimentos transversais ao Direito, à Ética aplicada, à Informática e à Psicologia – o dever de proceder à fiscalização destes sistemas, apurando em sede de retro-engenharia as respetivas responsabilidades através do Algoritmo do Cuidado. Adicionalmente, em função da finalidade prevista, cada fornecedor, utilizador, mandatário, importador ou distribuidor dos sistemas de IA deverá projetar-se no coração da Ética com Agentes Contrafactuais, face aos modelos de decisão, também eles automatizados, logo, tornando possível corrigir eventuais falhas em tempo útil e sinalizar enviesamentos significativos.

Por enquanto, ainda não é Direito, e muito menos será Direito da IA, todo aquele conjunto de regras que, apesar de condizentes teoricamente com a dignidade da pessoa humana, neguem por completo o mundo de agentes artificiais que se avizinha. A IA é como um comboio de alta velocidade que, por enquanto, aos olhos do Direito, ainda não pára nas estações da Europa e muito menos nos apeadeiros de Portugal.

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