A Inteligência Artificial brinca com todos nós diariamente. É perigosa e maravilhosa ao mesmo tempo. Do passado ao presente, manipula factos pessoais e encontra regularidades nos nossos cursos de ação. De seguida, processa-os sob a forma de regras lógicas, sem que nos apercebamos disso. Prevê resultados e executa-os, alguns deles concretizados mesmo em decisões operacionais que se intrometem naquelas esferas de liberdade, privacidade e segurança que o Direito obstina salvaguardar de maneira draconiana.

Ela já está aí há algum tempo, embora os juristas, sem surpresa alguma, só dela se tenham apercebido recentemente. Somos sujeitos à Inteligência Artificial nas pesquisas do motor de busca em ambiente Web, por vezes em processos de recrutamento laboral ou até mesmo quando pretendemos aceder a empréstimos bancários. Contudo, quando passamos para níveis de raciocínio, aprendizagem e interação que nos transcendem – como sucede, por exemplo, nas análises desportivas avançadas ou na condução verdadeiramente inteligente -, dizemos sem mais que ela não é previsível, que é inexata, incontrolável, opaca e discriminatória. Reconduzimo-la a uma não ética, portanto. Por isso, seguimos o caminho mais fácil e cortamos o malfeitor pela raiz, proibindo a sua implementação com conceitos poéticos não convincentes, ditos genéricos e abstratos, em jargão próprio. Não engenhamos solucionar o problema, até porque nem o definimos com rigor científico. Não traçamos objetivos e, consequentemente, nem sequer passamos pela etapa das tarefas computacionais e respetivas técnicas empregues nos modelos de aprendizagem. É esta a tendência que queremos para um Direito do Século XXI, aquele que até agora, se produz a partir de si e só para si próprio?

Sucede que por de entre este quebra-cabeças proibitivo que nos conduz a mau porto, não se pode continuar a refutar a ideia segundo a qual a primeira e melhor mãe do (ou para o) Direito da Inteligência Artificial é a Engenharia Informática. Num futuro próximo, não precisaremos ainda de estudantes programadores, nem tão-pouco de cabeças maquinizadas que debitem os artigos, antes de seres dotados de empatia, criatividade e adaptabilidade que interajam ou percebam o funcionamento dos programas num mundo cada vez mais digital.

E só assim poderá ser este o novo ramo do Direito que favorecerá o tal entendimento crítico e construtivo dos conceitos ou das teorias sobre os quais se tem evitado debruçar, quiçá por incúria do dever de cuidar com paixão, de desenvolver sem protagonismos e de agir com a cautela apropriada do quem com competência para doutrinar ou legislar. Mudemos de paradigma, por favor.

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Até agora, tem sido mais fácil o recurso a códigos-fonte tecnofóbicos. Talvez este pensar e executar de feição a la Engenharia do Direito faça com que os Sistemas de Inteligência Artificial raciocinem, logo nos primeiros ciclos das operações de treino e teste, que determinados resultados são incorretos, legalmente proibidos, socialmente inaceitáveis e até puníveis judicialmente. Mais do que um dever, uma intervenção técnica e jurisperita conjunta desde a conceção tem de ser prescrita como uma verdadeira obrigação a realizar em contornos polivalentes e multidisciplinares. Feitas as contas, afinal, esta nova engenharia pode vir a ser o novo carrinho de investigação que circula nas calhas daquelas rodas que trilham soluções mais práticas e mais exequíveis, entretendo a razão e sendo mais fiel à necessária harmonização entre o Direito e a Tecnologia. Porque só o reconciliar simultâneo e congruente destes dois saberes contribuirá para o esboço aperfeiçoado e estável do novo mundo de agentes que se avizinha, aquele em que entes naturais e sintéticos conviverão cada um no seu lugar e com os seus próprios estatutos.

Não se engane. Por detrás de mecanismos aprendizes podem existir operações frias, porque nem tudo o que é inteligência acaba por ser ético, se é que alguma vezes conseguiremos diferenciar para cada situação o correto do menos correto. Mas uma coisa é certa: as inferências processadas em grande escala têm saído magoadas pela forma [(lei)go]rítmica e exagerada como são tratadas no (ou pelo) Direito dos Livros. Aqui, a Engenharia do Direito da Inteligência Artificial surgirá – assim querendo – como uma lufada de ar fresco, uma força inevitável e inovadora. Este novo ramo pode posicionar-se como uma das poucas ferramentas úteis que, nas matérias de decisão automatizada, cristalizar(ão) uma robusta proteção que verdadeiramente assiste, protege e norteará o cidadão.

De facto, também deve dizer-se que a inteligência do atual ser sintético sai do ventre dos megadados com apetência para potenciar o bem e o mal. Também os softwares ou os mecanismos físicos autónomos são já capazes de coisas maravilhosas e horríveis. Eles têm fome de mais e melhores dados brutos, porque é com base nestes, por causa destes e só com estes que eles – os agentes de software – alcançam performances quase perfeitas, as mais das vezes melhores do que as humanas, por sinal. Crescem e vivem num processo de seleção e aprendizagem constante. Tal como nós, seres humanos, os agentes de software divertem-se com análises não explicáveis, por vezes, mesmo traduzíveis em resultados desastrosos, embora descritivos de projeções humanas – estas sim, inadvertidamente ou propositadamente discriminatórias. Estes novos agentes possuem tamanha garra que nos leva a temê-los, de tal forma que o termo “impossível” pode desaparecer mesmo do nosso dicionário a médio prazo.

Por agora, o Direito da União Europeia não quer, os engenheiros sonham e as grandes obras podem ficar por nascer. Porque tal como o ser humano, também as aplicações mais evoluídas de Inteligência Artificial podem ser sultões por ocasião. Também elas terão uma palavra a dizer em decisões ou tarefas que nos completam como pessoas imperfeitas, por de entre todas as nossas virtudes e defeitos. Certo é que nunca dirão desta operação não extrairei resultados danosos ou desajustados. Hoje, errar já não é só humano. E também os agentes de software aprendem não só com os seus próprios erros, reforçando-os pela positiva, como também replicam as tendências desviantes que o ser humano teima esconder. Com eles, apercebemo-nos que os dilemas da vida real não são criados por cientistas loucos, mas antes pelas diversas formas que os interesses individuais colidem com os dos outros e da sociedade no todo. Haverá uma linha de ação racional para cada situação? Não terá a Inteligência Artificial também direito a errar dentro de balizas legais fixadas tão-só e em virtude da sua mecânica interna?

Pelo dito, se os engenheiros legais (teóricos ou práticos) quiserem mesmo contribuir para uma Sociedade XXI que abraça verdadeiramente a interação constante homem-máquina em ambientes orientados por dados, só lhes restará reconhecer a existência de uma inteligência própria, alternativa, auxiliar ou complementar e não substitutiva das valências emocionais que fazem dos humanos agentes naturais singulares. Este tipo de inteligência – a sintética -, incitar-nos-á a ser cada vez mais e melhores pessoas. Com ela e junto dela, caminharemos por certo de mãos dadas para um mundo (inclusivamente, jurídico) mais capacitado, mais ágil, a fim ao cabo, mais inteligente e mais alfabetizado a nível digital. E se, em 2018, Paulo Novais e Pedro Miguel Freitas diziam que a Inteligência Artificial era uma ciência ou engenharia, hoje eu digo de peito aberto que ela é muito mais do que isso. Ela é nossa amiga. Por vezes erra, mas também como fazemos com os nossos amigos, demos-lhe o benefício da dúvida. Não devemos, não podemos nem sequer temos o direito de continuar a impedir sem mais o seu desenvolvimento. Ajudemo-la a ser cada dia mais e melhor.