Me lembro bem do dia em que levei minha sobrinha mais velha, Rita, ao Fórum do Jabaquara, em São Paulo, onde eu fazia estágio. Não era um passeio muito divertido, mas ela queria saber onde eu trabalhava, então a levei para uma visita. Ela tinha uns 6 anos de idade e, conforme andávamos por dentro do edifício cinzento, ela ia me perguntando o que era cada uma das coisas ou salas que via.
Quando passamos pela carceragem, Rita arregalou os olhos e me perguntou o que era aquilo. Eu expliquei a ela, com alguma naturalidade, que aquele local era um tipo de sala de espera, onde as pessoas que estavam presas aguardavam. Disse que elas saíam das prisões e iam até o Fórum para ter “conversas” com os juízes sobre quanto tempo mais passariam na cadeia.
Não sei narrar o espanto da minha sobrinha. Ela só berrou:
— MAS AINDA EXISTE GENTE PRESA NO MUNDO?!
Foi difícil explicar qualquer coisa depois disso. E lembro também que o assombro dela foi um tipo de divisor de águas para mim, sobre o quanto o nosso mundo é desconcertante e sobre o quanto, frequentemente, ele rema em direções erradas que nós, anestesiados, já nem questionamos mais.
Ontem amanheci com a notícia da morte do general Soleimani pelos EUA. Todo um filme dos meus anos de doutoramento em Direito Internacional passou dentro da minha cabeça. Foi como rever todas as coisas que estudei nos últimos anos e perceber minha capacidade inabalável de, mesmo assim, ficar perplexa.
Lembro de que quando dava aulas de Direito Internacional Público em São Paulo, frequentemente via no rosto dos meus alunos o mesmo assombro que vi no rosto da Rita, quando eu falava que íamos ter aula sobre Direito de Guerra. “Mas a guerra não é a falência do Direito, professora?!” alguns perguntavam.
E eu explicava que não, pois depois da guerra ainda há um outro passo “possível”: a barbárie. A guerra pelo menos tem certas regras. Quem se pode matar. Como se pode matar. O que se deve fazer com os corpos. O que se pode fazer com prisioneiros. Uma certa ideia de ética dentro da guerra — como se isso fosse efetivamente possível.
Em dias como ontem, confesso que olho para o mundo e só consigo pensar no quão errado as coisas deram. No quão incongruente foi a nossa evolução. Trocando mensagens com meu amigo Jamil Chade — jornalista correspondente internacional baseado em Genebra há 20 anos — perguntei se, caso a guerra do Iraque ainda estivesse em curso, o ato dos EUA de matar o general iraniano em solo iraquiano seria ato ilícito ou não, uma vez que ele é um militar e não um civil, embora não seja nacional de nenhum dos países envolvidos na guerra. Ficamos pensando nessas hipóteses.
Mas depois eu me perguntava, em contradição a toda minha racionalidade e meus anos de estudos: direito de matar? Direito de fazer prisioneiros? Permissão jurídica para essas insanidades? Há certos dias em que minha cabeça deixa de ser um jogo de xadrez e passa a ser um grande nó. Dias em que todos os livros, tratados, acordos e convenções internacionais perdem o sentido e a única coisa que faz sentido é a voz da Rita, aos 6 anos, gritando:
— MAS AINDA EXISTE GENTE PRESA NO MUNDO?!
Pois é, Rita, existe. Existe gente presa. Existe gente morta. E existe direito de prender. Direito de matar. E existem os maiores governantes do mundo mandando matar, tanto de um lado quanto de outro, e se vangloriando pelas mortes decretadas. E existe um caos no qual tudo isso é apenas a hipótese de um início de guerra. Guerra que nem é, no fim das contas, a tal da barbárie. Porque a barbárie ainda está longe. Ou — na verdade — porque a barbárie está aqui todo santo dia. Pois é, Rita. Talvez o mundo tenha simplesmente dado errado.