Sentados nos estúdios de televisão vão dizer que foi falta de visão, que não houve coragem. Pior, que em Portugal as coisas nunca se discutem a tempo. Alguns mais expeditos nestas artes de passar por entre os pingos da chuva vão afivelar um ar compungido para em seguida colocarem a génese do problema num tempo qualquer ideologicamente útil; o Estado Novo, por exemplo. Mas o PREC e “esta austeridade” (como será “aquela austeridade”?) também podem dar jeito.
Nos jornais, rádios, nas justiceiras redes sociais o exercício vai repetir-se. No fim vão chorar a oportunidade perdida, a falta de coragem. E, claro, vão dizer que não houve estadistas à altura do problema. E vão dizê-lo com aquele ar de quem naturalmente se considera à altura de tudo. E claro que têm pena, aliás sentem uma pena imensa dos afectados pela tragédia. Temos pena – é o que terão para dizer e nem por uma vez e nem por um segundo se deterão a apurar as suas responsabilidades na tragédia que que comentam e contemplam. Falo obviamente da Segurança Social ou mais propriamente dessa míriade de rostos que agora se sobressaltam sempre alguém diz o óbvio: a não fazermos nada – e fazer alguma coisa implica necessariamente cortar-se nas pensões mais altas agora a pagamento – os actuais contribuintes da segurança social terão no dia em que se reformarem pensões pouco mais que miseráveis.
Tudo isto é sabido há anos e anos: o primeiro relatório sobre a (in)sustentabilidade da Segurança Social remonta à década de 80 do século passado quando Diogo de Lucena e António Borges fizeram um estudo sobre o assunto para o Governo então liderado por Cavaco Silva. Muito simbolicamente o estudo não teve qualquer tipo de divulgação pois os seus resultados eram assaz preocupantes. Quase trinta anos depois o problema cresceu, tornou-se provavelmente na questão mais grave do nosso tempo, mas nada mudou na forma infantil como os governantes nos tratam e na hipocrisia que estrutura o seu discurso.
As recentes declarações de Maria Luís sobre a necessidade de efectuar cortes nas pensões a pagamento tornaram-se no pretexto para o exercício da mais pura mediocridade e do mais acentuado populismo desse tipo de discurso. Marcelo Rebelo de Sousa declarou como se estivesse a comentar o jogo Carcavelinhos-Berlengas: a ministra “é tão competente a governar como incompetente a falar”. Porque se a ministra fosse competente a falar calava-se obviamente. Então ela não sabe que vai haver eleições e que nas campanhas eleitorais domina o faz de conta? Ela não sabe que o bom político não é aquele que apresenta soluções para problemas reais mas sim o que consegue criar um discurso que os nega? Realmente Maria Luís ignorou o essencial: as tragédias em Portugal não são para evitar. São para lastimar.
Passos rapidamente arrepiou caminho (40 por cento do eleitorado do PSD é composto por reformados!) e veio dizer que no programa da coligação esse tema não será detalhado. Claro que isto não escandaliza ninguém! A sustentabilidade da Segurança Social é provavelmente a questão mais importante a que terá de de se acudir nos próximos anos mas dizer que reformá-la implica ajustamentos é um crime. Já dizer que não se lhe vai mexer, como afirmam a esquerda e o CDS, ou que não vai detalhar o que pretende fazer nesta matéria, como fez Passos, isso não é escândalo. É sim fazer política. E Costa, sem perceber sequer a dimensão do que estava a dizer veio até declarar, como quem faz uma revelação matreira, que Maria Luís falou verdade ao dizer que se têm de cortar as pensões a pagamento. A assistência rejubilou porque desta vez o líder socialista tinha dito algo que pode embaraçar o Governo: a ministra quer cortar as pensões!!! Felizes os jornalistas transmitiram logo o soundbyte antecedido da explicação horrorizada: a ministra das Finanças disse que têm de se cortar pensões.
Este exercício é tão patético que é constrangedor escrever sobre ele. Mas é o que temos. Nada nesta sequência de Ah!! e Oh!! seguidos de vários adjectivos e muitas indignações é novo e sabe-se sempre como começa e como acaba: os mais indignados com as dúvidas suscitadas pelos outros, os que têm mais certezas de que vai correr tudo bem, os que não hesitam nos adjectivos na hora de classificar os que levantam questões sobre a viabilidade de todo aquele universo radioso, esses serão os primeiros a sair de cena quando as coisas começarem a correr mal. Alguns anos depois fazem o tal exercício de falar da culpa. Dos outros naturalmente. E depois tudo se repete porque nada se aprende com os erros cometidos.
O que está agora a acontecer com a discussão sobre a Segurança Social parece decalcado daquilo a que agora chamamos tragédia dos retornados. Em Abril de 1974 a descolonização ia ser algo de verdadeiramente extraordinário. Duvidar da viabilidade do referendo anunciado em que cada território ultramarino ia escolher o seu destino ou da democraticidade dos líderes dos movimentos escolhidos por Portugal como interlocutores únicos era além de sinal de reaccionarismo, sintoma de uma descrença imperdoável nas capacidades das Forças Armadas, do povo e dos seus dirigentes. Quando começaram a surgir os problemas foram-se dando como perdidas as promessas mas ai de quem questionasse a forma como as decisões estavam a ser tomadas e apontasse as responsabilidades de cada um dos auto-proclamados libertadores: só colonialistas e fantoches do imperialismo podiam fazer tal coisa.
Quando o que fora anunciado como um processo histórico único e superior se tornou numa tragédia, eles, os anteriormente cheios de certezas, os proclamadores de um futuro radioso, desapareceram literalmente de cena. Ou mais propriamente desapareceram daquela cena porque outras cenas e outros palcos esperavam o seu brilhantismo, o seu espírito libertador e a sua clarividência.
E é exactamente este processo a que vamos assistir em matéria de sustentabilidade de segurança social: aqueles que agora tanto se insurgem com a necessidade de fazer ajustamentos, aqueles que têm a certeza de que basta o crescimento económico para resolver os problemas, esses terão saído discretamente desta discussão quando dentro de algum tempo a geração que agora sustenta a Segurança Social se confrontar com a degradação do valor das pensões que irá receber.
Mas nada disso interessa. O que interessa é que está estabelecido que dizer a verdade como fez Maria Luís pode levar a perder as eleições porque numa lógica eleitoral completamente dominada pelo populismo estabeleceu-se que há que mentir ao povo prometendo-lhe sobretudo o que já se sabe não ser possível.
Como afirma Ribeiro Mendes, secretário de Estado no governo de Guterres que tentou uma reforma da Segurança Social e que viu como este discurso estraçalhou a tentativa de devolver sustentabilidade ao sistema “Os custos reais ou imaginados das medidas da reforma são agigantados mediaticamente e, por isso, aquelas podem soçobrar ou ser esquecidas antes de executadas. As reputações políticas constroem‑se fabricando imagens lisonjeiras para os imaginários das várias clientelas eleitorais, recalcando tudo o que sugira esforço ou custo social e pessoal, numa voragem ininterrupta de mediatização espectacular. Assim sendo, a miragem de uma modernização totalmente indolor, asséptica e convenientemente anestesiante veio antagonizar o custo incontornável das reformas. A convergência destas clivagens originou uma fractura política irreparável na base de apoio ao Governo, relativamente às principais reformas estruturais completas.”
Trinta anos depois está tudo na mesma. Ou melhor dizendo a Segurança Social está bem pior e o populismo, esse, está triunfante.