Poderia considerar-se uma tradição, mas está provavelmente mais próximo de ser um fetiche: nos meses que antecedem eleições legislativas, erguem-se as vozes que não escondem a sua preferência por um bloco central na governação. Não é necessário ir aos arquivos, basta olhar para os últimos anos. Em 2015, o Presidente da República Cavaco Silva apelou a PSD-CDS e PS para que evitassem crispação em campanha, com vista a viabilizar entendimentos pós-eleitorais — algo que António Costa logo rejeitou, percebendo que seria a sentença de morte dos socialistas. Em 2019, o PSD (e, em certos momentos de ambiguidade, também o CDS-PP) fez campanha revelando-se disponível para substituir os parceiros à esquerda dos socialistas na geringonça e, desse modo, assegurar reformas em áreas definidas como prioritárias para Rui Rio — e os sociais-democratas tiveram o pior resultado em legislativas desde 1983. Agora, é Marcelo a preparar-se para exigir acordos para no mínimo dois anos, enquanto António Costa se posiciona para entendimentos à direita e Rui Rio mantém a sua abertura para viabilizar governos socialistas.

Se, nos anos anteriores, a hipótese de um bloco central apenas soou realista na cabeça de poucos, para 2022 são já muitos os adeptos desta aparente solução para o que, dizem-nos, será um parlamento demasiado fragmentado para gerar apoios estáveis a um governo minoritário — seja do PS ou do PSD. Percebe-se: desde há muitos anos que não é tão elevada a probabilidade de um bloco central informal (isto é, a viabilização de um governo minoritário pelo maior partido da oposição). Porque, à esquerda, o PS deteriorou a relação com PCP e BE na implosão da geringonça. Porque, tanto quanto se pode prever a esta distância, o PAN não terá dimensão parlamentar suficiente para construir coligações maioritárias com PS ou PSD. E porque, à direita, o crescimento do Chega poderá servir de bloqueio a soluções governativas lideradas pelo PSD. Ou seja, mais do que no passado recente, é relativamente provável que PS e PSD negoceiem entendimentos a dois.

Precisamente porque é mais provável acontecer, vale a pena lembrar a indesejabilidade de um entendimento desse tipo entre PS e PSD. Primeiro, seria um falhanço do sistema político e partidário num momento de crise social e económica. A democracia alimenta-se do pluralismo, de alternativas políticas e de alternância no exercício do poder — e tudo isso ficaria bloqueado debaixo de um bloco central, mesmo que informal. Segundo, seria entregar aos partidos nas franjas mais radicais a liderança da oposição, que gritaria diariamente contra o “sistema”, como já faz André Ventura. Existiria o risco real de isso elevar os radicalismos a alternativa política e potenciar o seu crescimento eleitoral (à direita ou à esquerda) — como já sucedeu noutros países europeus. Terceiro, num contexto de bloco central em que o PS mantém a posição dominante, o papel indirecto do PSD seria branquear as responsabilidades dos socialistas na governação. Ficaria, assim, esvaziado no seu papel de liderança de um projecto político alternativo. Na prática, o PSD, que é o motor federador das direitas, condenaria a direita a uma reconfiguração longa e dolorosa, que perpetuaria o PS no poder durante a próxima década.

Talvez seja esse mesmo o ponto-chave quando se avalia a eventualidade de um bloco central: a quem interessa tal solução? Ora, formal ou informal, um bloco central em 2022 apenas serviria os interesses comuns de António Costa e André Ventura. Seja mantendo o aparelho socialista instalado no poder (que é factor de mobilização do eleitorado do Chega), seja retirando o PSD da liderança de uma alternativa política. Também por isto, as eleições internas do PSD serão decisivas. Entre Rui Rio e Paulo Rangel há um mundo de distância, e esse mundo começa precisamente na relação com o PS.

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