É claro que me incomoda o valor da indemnização paga a Alexandra Reis. Como perturba a forma despudorada como foi combinada a sua saída da TAP e a nomeação para a NAV. Ou a distinta lata que teve ao aceitar o não menos descarado convite que Fernando Medina lhe fez para a secretaria de Estado do Tesouro quando no Terreiro do Paço se sabia de tudo o que se tinha passado (sim, bem sei, o ministro das Finanças diz que não sabia, temos todos o pavoroso dever de acreditar nele, mas cá em casa também se sofre de “fernandomedinite”: as minhas filhas também nunca sabem de nada e nunca partem nada, as coisas simplesmente «partem-se»; portanto, digamos que conheço mais ou menos a fórmula: elas dizem-me que não sabem quem foi, eu zango-me, umas vezes, finjo que acredito, noutras, e no fim quem paga o gasto é o pai e a mãe).

Toda esta novela é, de facto, sinistra e de um ou vários descaramentos que desarmam até o mais acérrimo dos fiéis seguidores do poder. Mas a única coisa efectivamente pornográfica no caso de Alexandra Reis é o valor da indemnização que recebeu para sair da TAP. Tirando isso, nada na sua história é particularmente singelo: é o costume. Com a única diferença de que foi o dinheiro envolvido que lhe deu o destaque devido. Não estivéssemos a discutir uma mala de notas e estávamos todos a fingir que não existe o que todos sabemos que existe: empresas públicas, institutos, fundações, observatórios, direcções-gerais, administrações hospitalares, centros de segurança social, centros de emprego, enfim, uma lista imensa de organismos cuja necessidade nem sequer discuto, mas que servem essencialmente para o situacionismo empregar as suas lapas e as suas amizades, normalmente em condições laborais que dificilmente encontrariam noutro lado, e, noutros casos ainda, para usufruírem do subsídio, do apoio, do patrocínio ou da avença, só possível com elites em estado de priapismo com o Estado. Arrisco, até, que se cada caso destes fosse tratado mediaticamente e com o escrutínio de uma opinião pública verdadeiramente livre, todas as semanas caía um membro do Governo.

O caso de Alexandra Reis não é mais do que o retrato fiel da situação e de um certo estado a que chegámos e de que nunca saímos, com rigor. Há sempre, nestes enredos, um novelo em que, aos poucos, vão surgindo amigos, primos, irmãos, compadres, o diabo a quatro, sempre relatados como casos singulares, em que a amizade, o laço familiar ou o simples pagamento de favor são tratados como meras coincidências – e muitas vezes sê-lo-ão, não duvido, mas que são sobretudo possíveis porque o país é estruturalmente endogâmico e as elites circulam em ambiente fechado.

(Não sei se Alexandra Reis, coitada, nem precisava disto para nada, se até tinha todas as condições para ser um grande quadro da aviação internacional, e assim sucessivamente. Não faço ideia das suas capacidades e competências. Mas a uma coisa já me habituei: não há um oportunista, um trampolineiro, um lambe-botas qualquer, que, uma vez evidenciada a sua trapaça ou a sua moscambilha, não tenha direito a um coro de vozes enunciando as suas qualidades. Nesta terra não há um único imbecil que, tendo as relações certas dentro da cloaca que Lisboa é, não acabe tratado pelos seus pares como um portento.)

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Certo é, e ninguém parece apto a contrariar tal facto, que se Alexandra Reis se tivesse mantido na administração da NAV e nunca tivesse chegado ao Governo, ainda por lá continuaria, apreciada por todos os que, de alguma forma, circulam nesta esfera intermédia da sociedade portuguesa que vive fora dos holofotes e dentro das redes de favores e bons ordenados à conta do Estado. Acabaram todos traídos por terem perdido a vergonha por completo. E o Governo acabou graças a uma arlequinada destas, evitável se ainda por ali houvesse um mínimo de pudor.

Por outro lado, o singular caso de Alexandra Reis ofereceu também ao país sentado novos actos da tragédia marcelista. Na noite da consoada, o presidente da República falou do caso de Alexandra Reis para dizer que não o ia comentar. Na tarde do dia de Natal, voltou a falar do assunto para introduzir um tema que nunca esteve em causa, tranquilizando a pátria ao dizer que não se estava ali perante um caso de incompatibilidade (?). À noitinha, Marcelo voltava à carga, sugerindo que podia haver quem pensasse que era bonito a secretária de Estado abdicar da indemnização. No dia seguinte, a 26 de Dezembro, pedia esclarecimentos sobre a indemnização, que seriam importantes para todos. Chegamos ao Ano Novo e Marcelo Rebelo de Sousa parece outro, deixou avisos ao Governo, enfim, fez o seu papel, por uma vez, depois de uma incontinência verbal mais uma vez inexplicável.

E cumpriu, ainda, o seu papel quando resolveu sossegar os mais ansiosos que começaram a exigir a demissão do Governo ou a dissolução do Parlamento, explicando que, ainda que o fizesse, não há alternativa a isto. E Luís Montenegro deu-lhe razão. O presidente do maior partido da oposição, ou pelo menos assim chamado, escreveu um tweet anunciando que o PSD vai «continuar a construir a alternativa», como quem diz que ela própria, a alternativa, não existe.

Eis, então, que o singular caso de Alexandra Reis revela um também singular país, em que, excluindo a legitimidade formal, já não há materialmente Governo, o presidente sofre de verborreia que flutua ao sabor dos telejornais, a oposição está encerrada para obras e onde se chama a tudo isto «estabilidade».