1 Dizia Karl Popper que a democracia é um meio para destituir o Governo sem derramamento de sangue — porque tal destituição, ao contrário do passado, é feita pelo voto e não pelas força das armas. Inerente a este conceito de democracia como sistema político estão várias premissas sem as quais tudo não passa de um simples simulacro.

Uma delas passa pelo debate e confronto livre de ideias — seja para ganhar o voto, seja para exercer o poder. Interligado com o debate está o escrutínio parlamentar. Em nome da transparência da gestão da coisa pública, quem exerce o poder executivo para o qual foi eleito tem de prestar contas ao Parlamento e ser escrutinado por quem está na oposição. O que pressupõe a existência de uma alternativa ou de várias alternativas políticas.

É por isso que o equilíbrio de uma democracia parlamentar depende muito da oposição. Sem uma oposição digna desse nome que fiscalize proativamente a maioria parlamentar que sustenta o Governo, o sistema fica naturalmente muito coxo. Porque sem uma alternativa credível, o povo não se sente tentado a refrescar quem exerce o Poder Executivo.

2Vem a isto a propósito do chamado Bloco Central que parece ter renascido das cinzas nas últimas semanas, mas acima de tudo da forma como o líder da oposição Rui Rio exerce o seu papel.

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Vamos começar pelo óbvio. Rui Rio foi eleito líder do PSD com a estratégia de recentrar o partido e retirar o PS das ‘garras’ do PCP e do Bloco de Esquerda. Rio sempre disse que queria fazer uma oposição responsável e construtiva. O problema é que a “oposição responsável” de Rui Rio implica tudo menos exercer o papel para o qual foi eleito: o papel de líder da oposição.

Veja-se o que aconteceu na pior semana do Governo de António Costa desde que a crise pandémica se iniciou — regressando à fase de início de março em que estava verdadeiramente acossado, tanto que até Marcelo Rebelo de Sousa recordou a António Costa que não podia começar uma nova legislatura “com ambiente de fim de ciclo”. No momento em que se constatou que o Executivo estava a falhar na fase de pós-confinamento, em que se percebeu que a narrativa para explicar a subida do número de infetados (muitos testes e festas ilegais de jovens) foi desmentida pelos técnicos, em que o primeiro-ministro ‘puxa as orelhas’ em público à sua ministra da Saúde e em que se constata que Portugal é o segundo pior país da Europa em termos de novos casos — o que faz Rui Rio?

Ataca Graça Freitas e pede explicações à diretora-geral de Saúde — em vez de responsabilizar o seu interlocutor natural, o primeiro-ministro António Costa que pouco ou nada planeou para a fase de desconfinamento. Chama-se a isso uma manobra de distração para desviar as atenções daquele que deveria ser o seu alvo.

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“Estes debates, em que todos procuram criar incidentes, que desgastam a imagem da Assembleia da República, do primeiro-ministro e dos grupos parlamentares, melhoram a democracia? Não me parece que tragam qualquer dignidade. (…) o primeiro-ministro não pode passar a vida aqui permanentemente. Tem de trabalhar.”

Não quis acreditar quando li e reli estas declarações de Rui Rio ao Expresso. Quando a pressão do escrutínio sobre as causas do aumento do número de infetados em Lisboa aperta ainda mais, Rio não achou nada melhor do que propor uma… diminuição desse mesmo escrutínio. O líder do PSD quer que o primeiro-ministro apenas vá ao Parlamento oito vezes por ano: quatro visitas ordinárias, duas antes dos conselhos europeus, uma vez no debate do Estado da Nação e uma última vez para defender o Orçamento de Estado.

Ou seja, quando o Governo insiste em manter secretas várias componentes da situação epidemiológica (não transmitindo diariamente a variação do índice de transmissibilidade ou o número de rastreadores por infetados, por exemplo), quando a equipa de António Costa foi objetivamente incompetente em planear o desconfinamento do país e quando precisamos que o Executivo seja responsabilizado pelas suas falhas para melhorar o seu desempenho — o que faz Rui Rio? Quer escrutinar muito menos o Governo. A lógica política inerente a esta esdrúxula proposta é completamente inexistente e o ‘timing’ em que aparece é de bradar aos céus. Não passa pela cabeça de Rio a ideia de que um primeiro-ministro está a trabalhar quando vai à Assembleia da República prestar contas — o que diz muito sobre a ideia que Rio tem da democracia parlamentar.

A forma como o PSD viabilizou a escolha de Mário Centeno como governador do Banco de Portugal foi o primeiro passo desta nova aproximação do PSD a António Costa. Sem estar a repisar argumentos que já utilizei aqui, é importante reafirmar que a nomeação de Centeno para sucessor de Carlos Costa é uma promoção da governamentalização de entidades independentes. É um ex-ministro das Finanças que transita diretamente do Executivo para supervisor da banca — com a agravante de que discordou abertamente do processo de venda do Novo Banco conduzido pelo Banco de Portugal e terá de geri-lo nos próximos anos.

E tudo porquê? Porque o Conselho de Administração do BdP tem três lugares vagos e muito provavelmente o PSD vai ficar com um deles depois de Mário Centeno tomar posse. Ou seja, o maior partido da oposição  ‘vendeu’ o seu apoio a uma nomeação que quebra o espírito independente do Banco de Portugal por um verdadeiro prato de lentilhas.

Neste contexto, até a viabilização do Orçamento Suplementar é a menos má das opções tomadas por Rui Rio. Num momento em que o país precisa de fundos de emergência para combater a crise pandémica, é natural que PSD dê a mão a Governo promover a estabilidade. Seja como for, sempre no contexto de um apoio circunstancial. E não num apoio estrutural cada vez mais sólido como é aquele que Rio oferece numa bandeja de prata a António Costa.

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Portugal tem tempos muito difíceis pela frente. Se pensarmos que o valor da dívida já alcançou os 132% do PIB neste mês de Julho (estando apenas a 0,9% do máximo histórico de 132,9% de 2014) mas ainda sem o impacto imediato de uma parte dos elevados custos das medidas de emergência que o Governo foi obrigado a tomar e que só se verão a curto/médio prazo. Se pensarmos que a intervenção na TAP e nacionalizações como a da Efacec poderão agravar ainda mais as contas públicas de forma estrutural, com o Conselho das Finanças Públicas já alertou, ficamos com uma ideia aproximada das dificuldades que se avizinham.

António Costa parece que já está a antecipar isso mesmo ao começar a falar de crises políticas que recusa e de sondagens que lidera destacado das quais promete não se aproveitar para forçar eleições antecipadas por ocasião da discussão do Orçamento de Estado para 2022. Uma dupla rejeição que deve ser lida como um aviso à navegação do que Costa poderá mesmo fazer.

A instabilidade política não é a resposta certa à crise económica em que o país já está mergulhado. Mas o seguidismo e a recusa de Rui Rio em fazer uma verdadeira oposição ao Governo também não é a solução.

Há um meio termo que passa pela exigência de resultados a António Costa e a apresentação de propostas nesse sentido. Queira Rio ir por aí, claro. E não queira o Presidente Marcelo impedir com os repetitivos discursos de união e de unidade — que são a antítese do que deve ser uma democracia. Principalmente se o Governo estiver a falhar, como este está.

Texto alterado às 10h28m