O plano “Famílias Primeiro” tem o selo do medo do regresso de uma qualquer troika. Traz à memória o ano de 2008 quando se tentou combater a crise financeira com investimento público, sem levar em conta a restrição orçamental, e que acabou por nos levar ao resgate. Desta vez as “contas certas” são omnipresentes e o conjunto das medidas, dando dinheiro, vão ao ponto de abrir caminho para a redução estrutural da despesa, designadamente nas pensões. O Governo foi mais além do que a prudência recomendada pelo governador do Banco de Portugal e aproveitou o anúncio de distribuição de dinheiro para reconquistar a classe média e começar a cortar nas pensões.

São três os cheques que vão ser entregues no mês de Outubro: 125 euros para cada pessoa que tenha tido um rendimento global anual bruto de 37.800 euros em 2021; 50 euros por cada dependente até aos 24 anos e, para os pensionistas, meia pensão paga em Outubro a todos os que tenham a reforma sujeita às regras de actualização. Além desse dinheiro, há uma redução muito limitada do IVA da electricidade – de 13% para 6% até Dezembro de 2023 e que abrange apenas os consumos mais baixos –, limita-se a subida das rendas a 2%, prometendo-se uma compensação aos senhorios no IRS ou IRC, e congelam-se os preços dos passes e dos bilhetes da CP. As medidas para o gás limitam-se a permitir que os consumidores passem para o mercado regulado.

Ao todo, o Governo diz que este plano custa 2400 milhões de euros, o equivalente a um por cento do PIB, num ano em que o défice público está previsto que seja de 1,9% e que Fernando Medina reafirmou que se mantinha na conferência de imprensa desta terça-feira dia 6 de Setembro. Ou seja, se somarmos as medidas anteriores (1600 milhões de euros), as medidas que se esperam irrepetíveis somam quatro mil milhões de euros, ou 1,8% do PIB, o que se traduz num défice efectivo de 0,1%, praticamente equilíbrio de contas.

Além disso, o ministro das Finanças espera que a dívida pública fique abaixo dos 120% do PIB o que, dependendo do desempenho dos outros, nos tirará do grupo dos países mais endividados. O que nos coloca numa posição mais protegida, em caso de tempestade financeira.

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Com estes valores, Fernando Medina parte para o igualmente incerto ano de 2023 com margem orçamental para aguentar uma recessão, sem que Portugal entre nas turbulentas águas que geram a desconfiança de quem nos empresta dinheiro, obrigando-nos, como aconteceu na era da troika, a aplicar medidas restritivas que alimentaram ainda amais a recessão. Como alertou o governador do Banco de Portugal, numa citação livre, aplicar agora medidas pró-cíclicas – que alimentam a expansão da economia – pode ser muito simpático, mas tira-nos margem para ser anti-cíclico quando a crise chegar.

Se a política económica fosse politicamente cega, a actual dinâmica da economia portuguesa recomendaria até que, nesta fase, não se adoptassem medidas de ajuda nenhumas. Mas seria politicamente insustentável ignorar a perda de poder de compra, em Portugal e ainda menos dos outros países da Europa, onde a guerra está a ter mais efeitos. Ninguém pode correr o risco de perder o apoio público ao combate que se faz na Ucrânia.

Claro que o plano do Governo é muito limitado. Mas as medidas têm um objectivo mais político, no sentido anglo-saxónico de “politics”, do que de política económica. E se olharmos para o plano do ponto de vista político, ele atinge os objetivos. O Governo criou uma onda mediática com o que anunciou de distribuição de dinheiro, sem ameaçar os objectivos financeiros das contas públicas a curto e médio prazo e sem atirar lenha para a fogueira inflacionista – ou seja moderando os efeitos pró-cíclicos. Melhor ainda, a coberto da generosidade, conseguiu integrar medidas que são as sementes para a redução das pensões de reforma, antecipando financeiramente as mudanças que se esperavam para depois de 2024.

O rendimento dos pensionistas vai crescer menos, a partir de 2024, do que aquilo que se previa, já que terão uma pensão base mais baixa porque a lei de atualização não será aplicada. A seguir virá outra, menos generosa. Mas, por muito que se explique, e todos os jornalistas e economistas o têm feito, os pensionistas em geral vão ficar agradecidos pelo que vão receber em Outubro e pela subida, mesmo inferir, que vão ter em 2023. Aquilo que podia ter acontecido e não aconteceu só dificilmente entra nos raciocínios de avaliação do cérebro humano.

O que se fez nas pensões é de facto mais um caso de estudo, de muitos, que este Governo nos tem dado. Tem uma capacidade muito especial de transformar problemas e dramas em oportunidades para brilhar. Dar com uma mão e tirar com a outra tem sido uma arte dos últimos anos e, apesar disso, o Governo não deixa de nos surpreender. De facto, não passaria pela cabeça de ninguém que fosse politicamente possível aproveitar uma conjuntura de perda de poder de compra para cortar nas pensões, começando a resolver o problema da sustentabilidade da segurança social, problema que o Governo sempre recusou existir.

É uma pena António Costa não gostar de fazer reformas – ou pelo menos dizer que não gosta. O país só tinha a ganhar se pusesse a sua capacidade de provocar dor sem ninguém reparar e até agradecer, ao serviço de mudanças que são politicamente difíceis, mas que o país precisa de fazer. O plano de apoio às famílias distribui tostões que geram milhões de contentamento, conseguindo manter os milhões no cofre do Estado para reduzir a dívida pública e adoptar medidas que começam a reduzir as pensões, garantindo a sustentabilidade da segurança social. E assim não se deu um passo maior que a perna, uma perna muito curta, mas que deu a ilusão de passos de gigante. E assim não se vive acima das possibilidades, todos contentes com os cheques de Outubro.