O anúncio da convenção do Movimento Europa e Liberdade (MEL), em 25 e 26 de Maio, desencadeou um tal coro de reacções adversas que uma pessoa que não conhecesse o que a esquerda portuguesa consome até se arriscaria a ficar surpreendida. Eu quase que fiquei, por uns instantes, até me dar conta dos membros do esplêndido coro reactivo e dos motivos sortidos que os inspiram. Depois, fez-se-me luz. É uma casa portuguesa, com certeza, com muito delírio à mesa, para animar o conforto pobrezinho do lar.

Nesta velhíssima casa portuguesa, que todos nós conhecemos muito bem, tenhamo-la ou não frequentado, tudo o que mexa à direita é visto como perfeitamente suspeito. Sempre foi assim e, arrisco-me a dizer, sempre assim será. O pão e o vinho que na humilde casinha são servidos têm certamente propriedades alucinatórias que ajudam à alegria da pobreza. Daí a ver sinistras conspirações quando um grupo relativamente vasto e variado de pessoas se reúne para discutir Portugal vai só um pequeno passo. Mas um pequeno passo de grandes consequências, já que o que venenosamente espreita por detrás da conspiração, fica-se a saber, não é nada mais nada menos do que a ameaça de um iminente retorno do fascismo. Do verdadeiro, daquele que é uma esfusiante e radiosa beleza matar. Atenção, dizem-nos, que não é nada contra a direita, que tem todo o direito de existir, mas esta direita não é a nossa, que é a verdadeira. É um bocado como o velhote do Astérix que dizia que não tinha nada contra os estrangeiros, a não ser contra aqueles que não eram da terra dele.

Pela milésima vez, pergunto-me: como lidar com este delírio? Aos sessenta anos, e conhecendo-o de ginjeira, creio bem que a única solução é não lhe ligar pevide. Até porque ele tem uma tão longa história que deve ter qualquer coisa de atávico. É o resultado de as pessoas viverem no interior de um mito e terem de realizar, a períodos fixos, determinados rituais destinados a actualizá-lo. O anti-fascismo ritual, juntando palavras e acções praticadas segundo uma ordem pré-determinada, confere sentido à existência e a ilusão de uma inteligibilidade do real exterior. Desde que a coisa não implique componentes sacrificiais, bodes expiatórios de carne e osso fisicamente violentados, é algo que a democracia aconselha a tolerar. Afinal de contas, as invasões napoleónicas podiam ser combatidas, mas não é coisa que se faça ao tipo que tem a mania que é Napoleão. É deixá-lo pôr a mão na barriga enquanto posa altivo. É deixá-los ver o fascismo a chegar a galope e berrarem que nunca mais, que “não passarão”.

Alguns livros podem-nos, de resto, colocar no estado de alma propício a não levar o delírio muito a sério. É o caso daquele que reúne as quarenta e duas conversas que Vasco Pulido Valente teve, entre Outubro de 2018 e Janeiro de 2020, um mês antes de morrer, com o jornalista João Céu e Silva e que este publicou em Fevereiro deste ano (Uma longa viagem com Vasco Pulido Valente, ed. Contraponto). As quase trezentas páginas lêem-se num instante e ajudam-nos muito, como disse, a ver as coisas na sua importância relativa, sem drama excessivo.

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Confesso que esperava que as conversas fossem algo como uma espécie de panorama geral daquela história do século XIX português que Vasco Pulido Valente tanto lamentou não ter escrito. Mas – compreensivelmente – não são, apesar de haver nelas várias referências ao século XIX. Elas incidem sobretudo no salazarismo, no marcelismo e no 25 de Abril e no regime por este criado. O que se perde por um lado, ganha-se por outro, garanto. A análise do opressivo mundo salazarista – ou melhor, dos diversos mundos que o compuseram – dá-nos excelentemente o ambiente daqueles tempos e a influência decisiva de vários factores, nomeadamente a evolução da relação entre Salazar e a Igreja. O mesmo se dirá do marcelismo e dos seus impasses constitutivos. E, sobretudo, do que nos diz sobre o 25 de Abril e sobre o regime dele nascido, o nosso regime. À medida que o tempo da história vai coincidindo com o tempo da sua própria vida, Vasco Pulido Valente pode, além de fornecer óptimas comparações entre pessoas e ideologias – o “pintasilguismo”, por exemplo, foi “uma espécie de Bloco de Esquerda prematuro” –, ilustrar o ambiente da época com a sua experiência pessoal (e não estou a referir-me às suas relações com Eanes, Sá Carneiro e Soares, das quais fala em detalhe).

Os exemplos são inúmeros e têm muitas vezes o poder de, por assim dizer, nos dar a ver, de um só golpe, o próprio de uma sociedade. Como não estou a escrever uma recensão do livro – apenas a aconselhar muito vivamente a sua leitura –, permito-me ficar por um só.  Quando era vice-chefe de redacção de O Tempo e o Modo, nos anos sessenta, Vasco Pulido Valente era obrigado a telefonar muitas vezes para a censura para protestar contra os cortes abundantes que esta obrigava nos artigos da revista. Cito extensamente uma passagem:

“Eu é que telefonava aos coronéis da censura a dizer: «Ó senhor coronel, porque é que cortou isto?» Era à portuguesa. «Porque cortou isto? Não é nada do que pensa», e ele respondia «Não quero esse comentário», e eu continuava com conversa mole «Não é nada do que o senhor coronel pensa», e discutíamos o texto linha a linha. Estive, sem exagero nenhum, centenas de horas ao telefone com os coronéis da censura e aquela converseta de vez em quando resultava. Acabei por os conhecer e dizia que queria falar com o senhor tenente-coronel Rodrigues e ia-se estabelecendo umas certas relações pessoais com os tipos, mesmo à distância. Quando eram artigos meus, eles diziam à portuguesa: «Eu só cortei isto e o senhor doutor está com muita sorte porque não cortei também aqueloutro por ser para o senhor doutor»”.

Muito do Portugal do salazarismo tardio está aqui: a prepotência, sem dúvida, que a censura em si exibia; o abuso da autoridade por parte daqueles a quem ninguém tinha pedido o sermão; mas também aquela infalível reverência pelo “senhor doutor” (“por ser para o senhor doutor”), muito típica da sociedade portuguesa em geral, por meio da qual o censor aspira a uma efectiva cumplicidade com o censurado.

Referi este livro porque ele nos dá uma excepcional imagem da evolução da “casa portuguesa” ao longo do século XX e do princípio do século XXI. Lendo-o, as loucuras do tempo presente tornam-se, à sua maneira, mais compreensíveis. Entre elas, as reacções descabeladas ao anunciado congresso do MEL e, mais genericamente, as rituais visões apocalípticas do retorno do fascismo com que nos enchem diariamente os ouvidos. Como disse, é gente, como muita de proveniência diversa antes dela, que vive no interior do mito e que se encontraria irremediavelmente perdida se abandonasse a ilusória inteligibilidade que este oferece, como o maluquinho que se julga Napoleão perderia aos seus próprios olhos a sua razão de ser se alguém lhe provasse que não era Napoleão. Felizmente para ele, ninguém lho pode provar.

PS. O livro de João Céu e Silva tem, como é quase inevitável, algumas gralhas. Não faria sentido estar a apontá-las aqui, mas, se houver interesse nisso, estou disponível para enviar ao autor a pequena lista para uma futura reedição.