1 No ano de 2010, saiu publicado pela Editora da Universidade Católica um livro de António Cortês, intitulado «Jurisprudência dos princípios». Este texto, com mínimas alterações, proveio da dissertação de doutoramento em Direito do seu Autor, na Universidade Católica, preparada sob a orientação do ilustre Prof. Castanheira Neves, de Coimbra.

2 Sem desdouro para tantas outras dissertações, de vária ordem, que muito honram a escola jurídica portuguesa, esta merece-me (a mim, um modesto aprendiz de jurista) uma especial admiração, pela luminosidade da sua incidência sobre o coração do constitucionalismo moderno, isto é, sobre a dignidade da pessoa humana e a sua irradiação em princípios fundamentais. Porque de pouco servirá gravar em letras de bronze dourado que «Portugal é uma República soberana baseada na dignidade da pessoa humana» (art. 1.o CRP), se depois as leis das maiorias parlamentares, e as administrações públicas dos Governos, não se iluminarem pelo meta-princípio da dignidade da pessoa humana, e pelos princípios que dela se refractam.

3 Assim, seleccionei dessa obra de António Cortês os excertos que abaixo incluo, considerando que, na actual circunstância de agudos debates sobre a disciplina escolar da educação para a cidadania, eles podem muito bem exemplificar uma boa lição de cidadania, a estudar por quem quer que seja, antes de se entronizar como educador da cidadania dos outros.

4 Claro, tive de pedir ao Prof. António Cortês para me autorizar esta publicação. O que ele me concedeu, mas a forte contragosto da sua modéstia. Pelo que muito grato me confesso. Passo a citar o Prof. António Cortês.

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5 «O Estado de Direito caracteriza-se por estar vinculado não apenas a um texto legal ou constitucional, mas também a todos os princípios do Direito, desde os mais universais, até àqueles mais estreitamente ligados com o sistema positivo. Esta ideia do Estado de Direito como um “Estado de princípios” reflecte-se, depois, aos mais diversos níveis. Entender o Estado de Direito como um “Estado de princípios” implica, desde logo, ver a relevância dos princípios ao nível dos direitos e liberdades fundamentais ou de outras posições jurídicas que se possam considerar salvaguardadas em face da intervenção do legislador ordinário». […] «Há direitos imediatamente aplicáveis que não estão escritos ou que não constam do catálogo dos direitos, liberdades e garantias que a Constituição apresenta, cujo carácter “incondicionado” resulta da estreita conexão que em concreto estabelecem com o princípio da dignidade das pessoas ou, ainda, com o núcleo essencial do Estado de Direito». (António Cortês, Jurisprudência dos princípios, Lisboa, UCE, 2010, p. 314).

6 «…o Direito protege bens e valores objectivos […] mas isso não pode ser feito à custa da dignidade das pessoas. Uma perspectiva plural reconhecerá que a autonomia pessoal tem um papel central no Direito. Isso leva à necessidade de estabelecer nexos de instrumentalidade entre os direitos, por um lado, e as garantias institucionais e as tarefas do Estado, por outro lado. E é também neste sentido que se deverá falar de uma não funcionalização dos chamados “direitos de liberdade” e, em especial, dos direitos mais estritamente pessoais, que deverão possuir um grau máximo de inviolabilidade e de protecção jurisdicional…». É, ainda, no desenvolvimento da mesma ideia que se poderá falar de um nexo de prioridade entre os “direitos, liberdades e garantias» e os «direitos económicos, sociais e culturais», de um carácter instrumental das chamadas “garantias institucionais” e de uma vinculação não subjectivada às “tarefas do Estado”. […] Estas [enunciadas por Rawls] duas regras da prioridade (válidas na relação dos princípios da justiça, entre si, e destes em face das políticas públicas) […] estabelecem antes um nexo de relação entre os direitos e liberdades das pessoas, por um lado, e as políticas públicas e sociais, por outro lado, afirmando que as segundas encontram a sua finalidade nos primeiros. O que Rawls pretende é garantir a não-inversão da relação entre meios e fins: o fim último na ordem jurídica não é a protecção de uma colectividade que absorva em si a liberdade pessoal; são sim as pessoas e a sua livre realização em sociedade — são elas, como salientou Kant, os “fins em si” da juridicidade, a que os outros fins válidos, legítimos e merecedores de tutela, mas necessariamente intermédios, se subordinam. É também nesta mesma linha que Castanheira Neves salienta a importância da distinção entre o “ideal social” e a “justiça”, por um lado, e “as utopias sociais dirigidas sobretudo à felicidade” e “a intenção fundamental do direito dirigido sobretudo à dignidade”, por outro lado». (ibidem, p. 326-7-8).

7 «Uma visão pluralista do direito implica ainda que as formas de protecção dos direitos fundamentais respeitem os princípios mais universais do direito e, em especial, o princípio da dignidade humana e onde decorre a exigência de proporcionalidade. […] Deste modo, a dignidade das pessoas exige a própria ideia de proporcionalidade ou de justa medida. Esta proporcionalidade tem expressão numa tutela jurídica diferenciada em vista da plural heterogeneidade da experiência. […] Na definição do alcance de cada direito fundamental é necessário ter em consideração o princípio da dignidade, entendido como respeito pela autonomia pessoal, e as exigências de proporcionalidade que esta postula. (ibidem, p. 328-9).

8 «O Estado tem de escolher, em função de toda a diversidade do real, os meios de protecção que. em cada situação típica ou concreta (consoante esteja em causa a sua actuação normativa ou, pelo contrário, a sua actuação concreta de carácter administrativo ou judicial), sejam mais conformes à lógica do pluralismo jurídico. Assim, por regra, […] os meios de apoio social ou fiscal às pessoas que concretamente necessitam serão preferíveis, por regra, à directa criação de um serviço público estadual na lógica absorvente do Estado Providência. O pluralismo postula, por fim, um modelo social fundado no princípio da subsidiariedade, entendido este como princípio misto de autonomia e de justiça social. O princípio da subsidiariedade parte do primado das pessoas sobre a sociedade, isto é, da preferência pelas pessoas e pelas comunidades nas quais a pessoa está ontologicamente inserida ou mais estrita e directamente envolvida. Ele implica pois, como dissemos, desde logo, a prioridade das pessoas em face da sociedade, mas também a prioridade da sociedade civil e dos poderes locais em face do Estado e deste, por sua vez, em face das comunidades mais amplas. O significado mais elementar do princípio da subsidiariedade pode explicar-se por contraposição: ele contrapõe-se quer ao individualismo egoísta, que transforme todos os bens públicos e sociais em meros bens privados, quer a um absorvente providencialismo estadual (porventura de inspiração marxista), que ignore o decisivo papel da autonomia (seja de nível pessoal ou político) na construção de uma sociedade verdadeiramente solidária, ou seja, de uma sociedade construída a partir das estruturas básicas dessa solidariedade (pois, como lembra Höffe, na sociedade anónima de massas não há espaço suficiente para uma verdadeira solidariedade)». (ibidem, p. 330).

9 «O princípio da subsidiariedade é a projecção política, social e jurídica de uma sociedade que se organize para servir, antes de mais, o Homem — o Homem na sua plena humanidade, ou seja, na sua liberdade e na sua dignidade […]». (ibidem, p. 332).