Ganhámos o eurofestival. Vou beliscar-me e escrever outra vez: ganhámos o eurofestival. No dia 13 de Maio. No dia em que o Benfica conquistou pela primeira vez o tetracampeonato. Há umas semanas, disse a um escritor curdo (não vou entrar em pormenores) que se havia alguém a escrever as nossas vidas de certeza que não era romancista. Mas este dia foi escrito por um romancista, daqueles que não se preocupam com a verosimilhança, que não se importam de guardar todos os clímaxes improváveis para a mesma página. Esgotámos o nosso stock de improbabilidades para os próximos séculos. Peço desculpa aos adeptos de outros clubes, mas é muita alegria junta.

O momento da votação foi sempre o melhor do eurofestival. E, para nós, o pior do eurofestival. Todos os anos, qualquer que fosse a canção que para lá mandássemos, eu acreditava que era daquela vez. Até que começava a votação. Zero pontos na primeira. Calma. Aqueles não gostam de nós. Zero pontos na segunda. Ainda podemos recuperar. Três pontos na terceira. Está no papo. Zero pontos. Mais zero pontos. Até quem não era um génio a matemática conseguia fazer as contas. E lá vinham os dez ou doze pontos da Espanha ou da França e o caneco seguia obedientemente para a Irlanda. Ou a Suécia. Ou o Luxemburgo. Ou a Suíça. Irlanda. Israel. Irlanda. Houve anos miseráveis, como quando escolhemos como nosso representante o infame Duo Nevada. Mas houve anos de justificadas esperanças: José Cid, Dulce Pontes, Sara Tavares. O resultado era quase sempre o mesmo. Nem nos cinco primeiros. Já só queríamos ficar acima da linha de água. Pais preocupados com saúde psicológica dos filhos tapavam-lhes os olhos no momento da votação.

E este ano? Primeiro país e doze pontos para Portugal. E a seguir pontos atrás de pontos. Mas nunca fiando porque ainda faltava o televoto. Mentalmente começámos a ensaiar desculpas em caso de derrota às mãos do voto popular. Quando ultrapassámos a barreira dos 200 pontos entrámos em território da Quinta Dimensão. Ninguém sabia o que podia acontecer. A vitória era possível, mas também era possível cair um asteroide em Kiev ou os russos entrarem por ali com tanques de guerra. Para nossa sorte, o pior que aconteceu foi vermos o rabo de um australiano. E, por fim, a confirmação. Bulgária em segundo. Portugal a vencer o eurofestival pela primeira vez em 900 anos de história. Na Ucrânia, onde nunca é fácil ganhar. Nem os trovadores galaico-portugueses. Nem o Domingos Bomtempo. Nem o Grupo de Cantares de Manhouce. Nem a Amália Rodrigues. Nem a Lúcia Moniz. Ninguém. Só o Salvador e a Irmã Luísa é que cometeram esta proeza que há de figurar nos anais da história da humanidade. A geração dos meus pais testemunhou a chegada do homem à lua, mas isto é um acontecimento maior. Toda a gente sabe que é mais fácil mandar um americano para o espaço do que pôr um português nos píncaros da eurovisão.

Reza a lenda que Pyrosion, deus da eurovisão, quando mergulhou a Europa num balde de azeite e brilhantina, segurou o continente pelo seu extremo ocidental, que assim não foi abençoado pelo líquido sagrado. Os deuses, em divino concílio no Olimpo, decidiram que todas as nações, excepto Portugal, venceriam o certame. Essa maldição durou até hoje, mas finalmente foi quebrada pelo Messias do Jazz.

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E pronto. Ganhámos. OK. Mas o discurso de vitória do Salvador foi deselegante. Ao desvalorizar implicitamente as músicas dos outros concorrentes desvalorizou a sua vitória. Ninguém lhe apontou uma arma para ir concorrer para o meio de azeiteiros e autores de canções pop descartáveis. Se achava tudo aquilo abominável, por fidelidade à sua integridade artística devia ter ficado sossegadinho em casa. Ou será que ele imagina o seu grande ídolo, Chet Baker, a ir a um festival do género? Foi lá para salvar a música? Então foi enganado. Não é a música de qualidade que vai ganhar um novo alento. É o eurofestival e a carreira do próprio Salvador. Para o ano é possível que apareçam umas dez imitações de Salvador Sobral, a apostar em coro na simplicidade, na autenticidade e na “proper music, man”. A boa música que ainda se faz sobreviveu a 60 anos de eurofestival. E se o eurofestival sobreviveu a 60 anos de música de plástico é porque essa é a sua essência. E o plástico pode ser um material foleiro, mas é muito resistente.

“There’s a great future in plastics. Think about it. Will you think about it?” (Mr. McGuire, “A Primeira Noite”)

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor dos romances “As Primeiras Coisas” (vencedor do prémio José Saramago em 2015) e “Hoje Estarás Comigo no Paraíso”.