Qualquer fã de jazz conhece estas palavras de cor: “Ladies and gentlemen, as you know we have something special down here at Birdland this evening… a recording for Blue Note Records…” A elas está associada a peculiar voz de Pee Wee Marquette (William Cray Marquette de seu verdadeiro nome), o mestre de cerimónias do clube de jazz nova-iorquino Birdland, um gnomo algo malévolo que quando não recebia dos músicos uma gorjeta adequada podia distorcer e maltratar o seu nome quando da apresentação da banda, razão pela qual nem sempre era bem-quisto – Lester Young deu dele a lapidar definição de “half a motherfucker”.

[Introdução por Pee Wee Marquette e “Split kick”, tema de abertura de A night at Birdland]

Mas, nessa noite de 21 de Fevereiro de 1954, ou a gorjeta foi adequada ou a consciência da relevância histórica do momento se sobrepôs à inclinação de Pee Wee Marquette para a extorsão, pelo que os nomes são correctamente anunciados: Art Blakey (baterista e líder do grupo), Clifford Brown (“a nova sensação da trompete”), Horace Silver (pianista), Lou Donaldson (saxofonista alto) e Curley Russell (contrabaixista), ou seja, os Jazz Messengers em tudo menos no nome. Feita a apresentação, a banda arranca de imediato com o fogo latino de “Split kick”, uma composição de Silver. Esta memorável noite no Birdland daria origem aos dois volumes de A night at Birdland, um dos primeiros grandes êxitos da Blue Note, e o anúncio de Pee Wee Marquette tornar-se-ia familiar até a quem não se interessa por jazz, ao ser samplado pelos US3 em “Cantaloop (Flip fantasia)”, a faixa mais popular do mega-êxito de 1993, Hand on the torch.

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Pee Wee Marquette faz ver aos espectadores o privilégio que lhes foi concedido nessa noite: “quando aplaudirem as diferentes passagens, as vossas palmas vão parar directamente à fita de gravação, de modo quando [o disco] for tocado vezes sem conta pelo país fora, poderão dizer ‘São as minhas palmas que se ouvem neste disco’”.

Mas para que a trovoada de Blakey, as melodias em fogo de Brown, o swing irresistível de Silver e as palmas dos espectadores fossem imortalizadas, foi necessário o empenho e know how de um elemento que Pee Wee não anunciou: o engenheiro de som. O que estava de serviço aos microfones e à mesa de mistura nessa noite histórica no Birdland era um discreto optometrista de New Jersey chamado Rudy Van Gelder.

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Rudy Van Gelder e o produtor Alfred Lion

Engenheiro de som em part time

Pode um homem que não tocava instrumento algum, nem cantava, nem compunha, contar-se entre os mais marcantes da história do jazz? Sim, mas esse papel costuma estar associado a produtores – quanto aos engenheiros de som, os seus nomes são retidos apenas pelos estudiosos, pelos críticos, pelos coleccionadores e pelos nerds que escrutinam as letras minúsculas da ficha técnica dos discos. Só um alcançou renome fora desse círculo restrito de “iluminados”: Rudy Van Gelder. É também o único engenheiro de som que tem direito a uma entrada na Encyclopedia of Jazz de Richard Cook.

Rudy Van Gelder nasceu em New Jersey em 1924 e cedo revelou inclinação para engenhocas e tecnologia, mas equivocou-se no caminho: estava a estudar optometria, em Filadélfia, quando visitou com uns amigos um estúdio de rádio e sentiu que aquilo, sim, é que devia ser a sua vida. O sentido prático prevaleceu: concluiu o curso em 1943 e estabeleceu-se como optometrista em Teaneck, New Jersey. Mas não deixou de alimentar a paixão pelo registo, reprodução e transmissão de som: tornou-se rádio-amador e montou um estúdio na sala de estar da (espaçosa) casa dos pais em Hackensack, New Jersey.

Van Gelder entrou no mundo da gravação sonora numa altura de grandes mudanças tecnológicas: a primeira foi a entrada em cena, no final dos anos 40, da fita magnética, uma invenção alemã, da AEG e da BASF; no final da II Guerra Mundial os Aliados apossaram-se desse material e em 1948, era comercializado nos EUA o primeiro gravador de fita e logo provou a superioridade face aos discos de acetato que costumavam ser usados como masters na indústria discográfica.

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O gravador Ampex 300, lançado em 1953, representou um significativo progresso na tecnologia de gravação. Van Gelder comprou um assim que o modelo saiu e foi com ele que realizou muitas das suas gravações

Pouco depois, chegava aos EUA outro produto da superior tecnologia de som germânica: os microfones condensadores Neumann (e em particular do U-47), de que Van Gelder foi um dos primeiros utilizadores.

Também em 1948, a Columbia desenvolveu o LP de vinil com micro-sulcos, que era lido a 33 rotações por minuto, que também não tardaria a ser comercializado e a escorraçar os discos de 78 rpm de goma-laca (shellac). No início dos anos 50 o LP de 33 rpm estava definitivamente implantado no jazz e na música clássica, mas a partir de meados da década nova revolução surgiria, com a comercialização em massa dos discos estereofónicos.

Em 1952, Alfred Lion, o fundador, proprietário e produtor da Blue Note, ouviu uma gravação do combo do saxofonista barítono Gil Mellé, feita por Van Gelder, e gostou tanto do que ouviu que foi ter com o engenheiro de som que costumava trabalhar para a Blue Note, nos WOR Studios, e pediu que ele fizesse algo semelhante. O engenheiro de som disse que não era capaz e sugeriu a Lion que seria melhor falar com quem fizera a gravação. Foi assim que Van Gelder começou a gravar para a Blue Note, embora nos primeiros tempos a editora continuasse a recorrer também aos WOR Studios.

Outras pequenas editoras de jazz – sobretudo a Prestige, de Bob Weinstock, mas também a Savoy e, mais raramente, a Verve – começaram também a solicitar os serviços de Van Gelder, o que o obrigava a uma apertada gestão do tempo, uma vez que continuava a trabalhar como optometrista: as sessões eram maioritariamente nocturnas, pois as diurnas obrigavam-no a faltar ao trabalho. Quando a procura do seu estúdio aumentou, viu-se forçado a atribuir dias específicos para cada editora, de forma a optimizar o uso do tempo de estúdio e evitar complicações com as marcações.

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Rudy Van Gelder no estúdio

O estúdio de Hackensack começou a receber cada vez mais visitas e mais prestigiadas, ao ponto de Thelonious Monk ter imortalizado o seu nome numa faixa do álbum Monk, registado em 1954 para a Prestige por Van Gelder, precisamente em Hackensack (e que tem a curiosidade de a sua capa ter sido desenhada por um jovem artista filho de emigrantes eslovacos chamado Andrew Warhola, que o mundo viria a conhecer como Andy Warhol).

Em 1954, Van Gelder já se tornara no engenheiro de som usual da Blue Note, que, apesar da sua modestíssima estrutura, conseguia editar todos os anos algumas dezenas de discos de primeira água, com a mesma equipa a ser invariavelmente creditada na capa: Alfred Lion (produtor), o seu sócio Francis Wolff (fotógrafo), Reid Miles (designer gráfico) e Rudy Van Gelder.

Embora Alfred Lion preferisse os discos registados em estúdio, sabia reconhecer que havia bandas que davam o seu melhor ao vivo e foi assim que a 21 de Fevereiro de 1954, Van Gelder atravessou o rio para gravar o quinteto de Blakey no Birdland. A relutância de Lion em relação às gravações ao vivo era compreensível: até então, o som dos live tendia a ser desconsoladoramente baço, confuso e “encaixotado” e claramente inferior ao que era possível obter em estúdio. Mas em A night at Birdland, Van Gelder logrou um som muito superior ao habitual, ainda que sem a definição que conseguia obter em estúdio (os discos ao vivo continuariam a levantar problemas nos anos seguintes, a ponto de algumas editoras, ao aperceberem-se da deficiente qualidade dos registos, optarem por convocar os músicos para regravar tudo em estúdio e inserir aplausos, vendendo o resultado como se fosse o registo do concerto).

O novo estúdio

Os discos da Blue Note, da Prestige e das outras pequenas editoras para quem Van Gelder trabalhavam eram recebidos entusiasticamente pela crítica e pelos aficionados, mas tinham vendas modestas, pelo que, durante 13 anos, conciliou as actividades de engenheiro de som e optometrista. Só em 1959 passou a dedicar-se a tempo inteiro às gravações, quando inaugurou um estúdio em Englewood Cliffs, também em New Jersey, concebido de raiz para o efeito: tinha um pé direito de 10 metros, as paredes eram revestidas a tijolo e madeira e o célebre crítico de jazz Ira Gitler sugeria que lá dentro se era “tomado por uma sensação afim de uma experiência religiosa”.

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O interior do estúdio de Englewood Cliffs: Sessão de gravação de Stanley Turrentine para a Blue Note

Em Blue Note Records: The biography, Richard Cook descreve o “som Van Gelder” como “respeitando ao mesmo tempo o timbre do grupo e a singularidade dos músicos”, um som em que há “respeito pelo labor humano que fez nascer a música […] Nenhum elemento parece ser favorecido à custa de outro elemento. É uma sonoridade tão ‘democrática’ quanto possa conceber-se”.

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Exterior do estúdio de Englewood Cliffs

Van Gelder e os outros engenheiros de som

A aura em torno de Van Gelder pode dar a impressão de que era o único engenheiro de som do jazz dos anos 50-60, o que está longe de corresponder à verdade. A Riverside Records, fundada em 1953 por Orrin Keepnews e Bill Grauer, gravou de 1955 a 1961 – o seu período áureo – nos Reeves Sound Studios de Nova Iorque. O estúdio era usado durante o dia sobretudo para gravar anúncios publicitários, pelo que foi negociada uma tarifa reduzida para gravar jazz após o horário usual de funcionamento – muitas vezes os músicos iam gravar depois de terem cumprido as sessões nos bares e clubes.

Numa época em que a alta-fidelidade estava na moda, graças ao advento do LP de micro-sulco e da estereofonia, os discos de Riverside ostentavam orgulhosamente na capa os dizeres “A high-fidelity recording: Riverside-Reeves Spectrosonic High-Fidelity Engineering” (o “Spectrosonic” daria lugar, com a implantação do stereo nas gravações de jazz, a partir de 1957-58, ao “Stereosonic). Boa parte das gravações de jazz para a Riverside nos Reeves Sound Studios foram realizadas por Jack Higgins, cuja fama nunca chegou aos calcanhares da de Van Gelder, ainda que a sua qualidade média das suas gravações fosse apenas marginalmente inferior à obtida por Van Gelder.

[“Remember” faixa de Soul Station, de Hank Mobley, gravado em Englewood Cliffs a 7 de Fevereiro de 1960]

Ao contrário do que se vê escrito amiúde, Van Gelder não possuía o segredo das mais apuradas gravações de jazz. No início, Van Gelder tinha dificuldade em competir com a engenharia de som das grandes editoras, como ele mesmo reconhecia: “Quando comecei a gravar, não existia equipamento ao alcance da minha bolsa. A minha mesa de mistura fui eu que tive de construi-la. Só as grandes companhias tinham equipamento de qualidade”. A Verve, de Norman Granz, conseguia resultados comparáveis e até superiores aos de Van Gelder gravando em Los Angeles, nos estúdios da Capitol ou nos Radio Recorders. Mas os discos da Verve não costumavam creditar o engenheiro de som, apenas anunciavam que “a sessão foi gravada sob a supervisão pessoal de Norman Granz”.

Quem estava na linha da frente da tecnologia de gravação eram as grandes editoras como a Mercury/EmArcy e a Columbia, e o estúdio desta última na 30th Street (uma antiga igreja), em Manhattan, foi palco para algumas das mais excitantes gravações de jazz de todos os tempos (ouça-se, por exemplo, o exuberante Jazz Party, de 1959, com a orquestra de Duke Ellington reforçada por uma secção de percussão).

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Estúdio da Columbia na 30th Street, Manhattan, conhecido como “The Church”

Foi aliás o estúdio da 30th Street que Van Gelder admite ter sido uma forte influência na concepção da estrutura do seu estúdio de Englewood Cliffs. Mas na viragem dos anos 50-60, apesar da excelência do seu trabalho, os engenheiros de som da Columbia e das restantes grandes editoras não costumavam ser creditados nos discos de jazz.

Dez clássicos por mês

O que a Mercury/EmArcy e a Columbia também não tinham – ou apenas tiveram pontualmente – eram os músicos e a liberdade criativa das editoras independentes. O jazz mais pujante e inovador dos anos 50-60 estava na Blue Note e Prestige (e também na Riverside) e a maior parte desses discos foram gravados por Van Gelder. Na Blue Note, a partir de 1953-54, são raros os discos, no assombroso caudal de algumas dezenas de obras-primas por ano, pelas mãos de Art Blakey & The Jazz Messengers, Lou Donaldson, Sonny Clark, Horace Silver, Sonny Rollins, Jimmy Smith, Johnny Griffin, Paul Chambers, Lee Morgan, Freddie Hubbard, Blue Mitchell, Hank Mobley, Donald Byrd, Jackie McLean, Stanley Turrentine, Grant Green, ou Dexter Gordon, que não são obra de Van Gelder. Em 1960, a velocidade de cruzeiro dos estúdios de Englewood Cliffs era de uma dezena de discos por mês.

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A foto de John Coltrane, na sessão de gravação de Blue train em Hackensack, por Francis Wolff que seria usada na capa do disco

Entre os discos que Van Gelder registou neste período áureo, estão a tetralogia Workin’, Steamin’, Relaxin’ e Cookin’, de Miles Davis, captada em apenas duas sessões para a Prestige, em 1956, e Blue Train, de John Coltrane, registado em 1957 (e que inclui numa das faixas algum trabalho de “corta-e-cola”, unindo partes de takes diferentes, o que mostra que quando era necessário, Van Gelder e Alfred Lion não eram puristas do “som natural”, isto é, não-manipulado)

[“Blue train”, faixa de abertura do álbum homónimo de John Coltrane, a única gravação do saxofonista para a Blue Note]

Oito anos depois, Van Gelder voltaria a registar um disco emblemático de Coltrane, embora num registo radicalmente diferente, A Love Supreme (1964), numa das raras colaborações do engenheiro de som com a Impulse!.

À medida que a década de 60 ia progredindo, Alfred Lion, embora sendo mais conservador do que Bob Thiele na Impulse!, esteve atento aos novos valores e Van Gelder registou discos fundamentais das novas tendências do jazz, como Evolution (1963), de Grachan Moncur III, Out to lunch! (1964), de Eric Dolphy, Empyrean Isles (1964), de Herbie Hancock, Point of departure (1964), de Andrew Hill, Unity (1965), de Larry Young, Spring (1965), de Tony Williams, Adam’s apple (1966), de Wayne Shorter, Conquistador! (1966), de Cecil Taylor, ou Dimensions & extensions (1967), de Sam Rivers, sempre com assinatura Van Gelder.

[“Effusive melange”, faixa de Dimensions & extensions, de Sam Rivers]

https://youtu.be/aEr8GCw5g5s

Reforma activa

No final dos anos 60, o filão hard bop, que era o esteio da edição da Blue Note estava exausto e o jazz perdera boa parte do seu público para o pop-rock, o que levou alguns jazzmen a tentar adaptar-se aos novos tempos mediante mesclas, raramente felizes, com funk e soul e a Blue Note foi perdendo relevância – a editora fora comprada pela major Liberty em 1965, Lion reformara-se em 1967 e Reid Miles saíra no mesmo ano; Wolff faleceu em 1971. A Prestige, que também fora definhando ao longo da década de 60, foi comprada pela Fantasy em 1971.

Van Gelder manteve-se no activo, mas os discos que foi gravando deixaram de ter a relevância musical dos discos gravados anos 50-60. O jazz ramificara-se, hibridara-se e difundira-se pelo mundo: Nova Iorque tinha deixado de ser a capital incontestada do jazz e a Blue Note deixara de ser o seu farol.

Nos anos 90, os Rudy Van Gelder Studios de Englewood Cliffs ainda foram palco de sessões de gravação de velhas glórias do jazz dos anos 50-60, como Art Blakey, Ron Carter, Elvin Jones, Hank Jones ou Junior Mance, mas o ritmo foi tornando-se cada vez mais esporádico. Ainda assim, entre 2002 e 2011, o estúdio gravou cinco discos de Cedar Walton, outro veterano dos anos 50-60. Esta redução de cadência deveu-se, provavelmente, não só à idade avançada de Van Gelder como ao seu envolvimento em duas séries de edições remasterizadas.

Nos anos 90, a filial japonesa da Blue Note propôs a Van Gelder que procedesse à remasterização de parte do catálogo da editora; após uma recusa inicial, Van Gelder atirou-se ao trabalho e a RVG Edition reeditou muitas dezenas de discos, numa edição cuidada, com faixas extra e que, além de reproduzir as notas de capa originais, incluía notas adicionais de enquadramento.

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Capa de Perfect takes, uma edição CD + DVD da Blue Note que presta homenagem a Rudy Van Gelder

A RVG Edition incluiu, excepcionalmente algumas remasterizações de gravações que não tinham sido feitas por Van Gelder, como é o caso de The birth of the cool, de Miles Davis (que, na verdade, nem sequer é uma gravação original Blue Note – é uma gravação Capitol que os caprichos das aquisições e fusões empresariais fizeram aterrar no catálogo Blue Note). Apesar de críticas pontuais (algumas apontando um som excessivamente brilhante), as remasterizações a 24 bits resultaram num apreciável aumento de transparência e recorte das velhas gravações.

O grupo Concord, detentor do catálogo Prestige, seguiu o exemplo da Blue Note e, em 2006, iniciou a série RVG Remasters, pelo que Van Gelder passou boa parte do que, para outras pessoas, seriam anos de merecido descanso, a trabalhar afanosamente na sua paixão de sempre.

[Excerto de uma entrevista a Rudy Van Gelder por Michael Cuscuna, incluída em Perfect takes]