Não, a golpada não reside no facto de António Costa considerar que as legislativas de 4 de Outubro foram um plebiscito com a pergunta: quer o País ser governado pela esquerda ou pela direita?

Que agora derrotado Costa tenha esse entendimento não é uma golpada mas sim uma traição ao seu partido. O PS, tenha este processo negocial o desfecho que tiver, pagará um elevado preço político por aquilo que aconteceu nestes dias. Ver um líder socialista a fazer de conta que negoceia com o centro e a sair eufórico das reuniões com os radicais tem um elevadíssimo custo político e moral. (Sim, o PCP e o BE são radicais, usam as estratégias dos radicais para exercerem o controlo do aparelho de Estado e como todos os radicais tratam os seus aliados e opositores como inimigos de classe. O sorriso de Catarina Martins e a bonomia de Jerónimo de Sousa fazem deles pessoas simpáticas mas a democracia é outra coisa e ao BE e ao PCP o regime democrático só lhes agrada no capítulo dos direitos, nunca dos deveres.)

Mas deixemos de lado a traição do líder do PS ao seu eleitorado e ao seu partido. O que nos afecta a todos é a golpada. A golpada passa por apresentar como inevitável que Cavaco Silva emposse directamente António Costa, poupando Costa a ter de fazer cair o governo da coligação vencedora na Assembleia da República. Depois de o país mediático ter andado com Costa ao colo durante anos, o líder do PS quer agora que Cavaco prolongue o embalo e o poupe a essa imagem que o tempo tornará fatal. Digamos que é muito pedir e muito supor que os outros são parvos.

A ideia da golpada é boa mas em geral os golpistas só contam com a sua perspicácia. E agora apostam em fazer-nos crer que está inscrito nos genes do regular funcionamento das instituições que Cavaco deve ignorar a existência de um vencedor nestas eleições. Isso tem um nome: golpada.

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Em primeiro lugar porque António Costa não ganhou as eleições. Logo o governo de Passos e Portas tem de cair na Assembleia da República e só em seguida Costa deverá apresentar a sua plataforma de governo. Em segundo lugar não cabe ao Presidente da República resolver as divisões que sobre este tema possam existir no grupo parlamentar do PS: a queda do governo Passos-Portas e a viabilização de uma frente de esquerda são decisões que devem ser tomadas  na Assembleia da República, pelos deputados eleitos, cujo sentido de voto não é propriedade das respectivas direcções partidárias.

E em terceiro e último porque António Costa não é politicamente fiável. Logo as consequências dos seus actos devem ser por ele assumidas. E assim, para que no momento em que esta aventura terminar Costa não se desculpe dizendo que foi Cavaco quem chamou a frente de esquerda (durante a campanha não defendeu o PS que foi Passos Coelho quem chamou a troika?): essa sua decisão tem de facto de ser tomada por ele e não por interposto Presidente da República.

Percebe-se muito bem porque Costa, os seus novos aliados e a tralha socrática que se lhes colocou na esperança de que esse pacto ajude a abortar a Operação Marquês querem eliminar essa étapa: ela terá custos políticos imensos para o PS.

Mas essa etapa vai ter de ser cumprida. O formalismo é o que nos resta para não ficarmos nas mãos dos radicais. E tal como ao dr. António Costa assiste o direito de, em aliança com o PCP e o BE, fazer cair quem ganhou estas eleições, a nós assiste-nos o direito de lhe exigir que o faça pessoalmente sem se esconder atrás de Cavaco Silva.