Muito se escreveu e disse sobre Mário Soares, por ocasião da sua morte. Embora seja uma figura controversa, ninguém pode negar a sua importância na implantação e defesa da democracia em Portugal. É certo que também há quem o considere responsável pela descolonização que, como é sabido, mergulhou Angola e Moçambique em dolorosas guerras civis e obrigou ao regresso de milhares de portugueses que se tinham estabelecido nas colónias e que tudo perderam.

Há, em todos os testemunhos sobre Mário Soares, uma significativa unanimidade sobre a sua luta pela liberdade. Primeiro, como opositor ao regime autoritário de Salazar e de Marcelo Caetano, na prisão e no exílio. Depois, já em Portugal e como secretário-geral do Partido Socialista, como defensor da liberdade e da democracia, no período imediatamente posterior ao 25 de Abril de 1974. Neste segundo combate, o seu principal inimigo foi o Partido Comunista Português, que pretendia instaurar um sistema político não democrático, à imagem e semelhança das eufemísticas ‘democracias populares’ do leste europeu.

Vários casos – como os da unicidade sindical, do jornal República e da Rádio Renascença – tiveram o condão de despertar o país para uma realidade evidente: Portugal estava a enveredar por um sistema político totalitário, ainda menos democrático e mais autoritário do que o anterior ao 25 de Abril. Mário Soares, que conhecia bem a ideologia e a praxis comunista e cuja sobrevivência política estava também em causa, cedo se apercebeu de que o principal inimigo da jovem democracia portuguesa não era o ‘fascismo’ mas, como então se dizia, o ‘social-fascismo’, ou seja, o comunismo de tipo soviético.

Para esse combate, Mário Soares, que sempre foi, como gostava de dizer, republicano, socialista e laico, procurou a aliança com a Igreja Católica, que estava também a sofrer na pele a intolerância política e religiosa do novo poder. As relações entre Soares e a hierarquia católica datavam dos últimos tempos do regime de Salazar e Caetano: quando o bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, foi obrigado ao exílio, Mário Soares contactou o então Cardeal Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro. Já no fim de 1972, quando um grupo de fiéis organizou, na capela do Rato, uma vigília de oração contra a guerra colonial, ficou patente que muitos católicos não alinhavam com o antigo regime, muito embora este se reivindicasse de inspiração cristã e defensor dos seus valores, aquém e além-mar.

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Como em tempos recordou Almeida Santos, “quando havia hostilidade à Igreja, houve encontros políticos de Mário Soares com o cardeal [Patriarca de Lisboa, D. António Ribeiro], encontros reservados, a maior parte no patriarcado”. Alfredo Barroso, que foi chefe da Casa Civil ao tempo da presidência de Mário Soares, também reconheceu que, “antes da manifestação da Fonte Luminosa de 18 de Julho de 1975, houve encontros discretos com a hierarquia da Igreja”. Era então notória a hegemonia do Partido Comunista Português e a sua tentativa de sovietização de Portugal.

Quando, também no verão quente de 1975, se deu uma tentativa de invasão do patriarcado de Lisboa, cerca de oito mil cristãos foram defender o seu bispo. Desses fiéis, “37 ou 38 foram parar ao hospital, com pedradas”, como agora recordou Mons. Feytor Pinto. Para evitar que mais fiéis fossem feridos, o cardeal Ribeiro mandou abrir as portas do patriarcado, onde cerca de quatro mil cristãos se puderam refugiar. Nessa altura, Mário Soares ligou ao patriarca para oferecer a sua ajuda, apesar de dirigentes e militantes socialistas estarem também cercados nas instalações do República, por radicais que ameaçavam invadir e destruir as instalações do jornal. Não obstante a situação, Soares disse então a D. António Ribeiro: “Se querem, vamos para aí defender o patriarcado, defender os cristãos que estão aí dentro” (Público, 9-1-2017, p. 7).

Mário Soares, mesmo sendo agnóstico, sempre teve esta certeira intuição: a Igreja seria sempre uma aliada na luta pela democracia e pela liberdade. Assim foi, de facto, nos últimos tempos do regime de Salazar e Marcelo Caetano, bem como no verão quente de 1975, muito embora a hierarquia eclesial tenha tido sempre o cuidado de não permitir a instrumentalização política da sua acção pastoral.

Seria interessante que o partido fundado por Mário Soares assumisse essa tradição humanista e democrática, em vez de se aliar à extrema-esquerda. Em Abril de 1976, Soares disse ao Tempo que “o PS não se aliará ao PCP”, mas Costa aceitou fazer um acordo de incidência parlamentar com os comunistas e o Bloco de Esquerda… Mário Soares nunca se aliaria a partidos políticos antieuropeístas, que professam uma ideologia não democrática e que, por via das causas fracturantes, hostilizam a Igreja.

Mário Soares sabia que, ao defender o catolicismo, estava a defender a democracia: não em vão a Igreja foi a sua principal aliada na luta pela liberdade e dignidade de todos os portugueses.