Nunca como hoje a figura do Presidente da República foi tão desvalorizada. Nunca como nestas eleições presidenciais pareceram os portugueses tão desmobilizados, tão desinteressados e descrentes da relevância da escolha do mais alto magistrado da Nação. Ora nunca como hoje é tão óbvia a dimensão e importância dos poderes presidenciais. É o paradoxo de Belém.
Começo pelo princípio: o desgaste da imagem do Presidente da República é hoje enorme, com a figura de Cavaco Silva a ser colada a uma espécie de chefe de facção, imanência (e eminência) parda do partido de que provém. Entre outros “mimos”, Cavaco já foi chamado de “salazarista convicto” (Mário Soares), “presidente múmia” (Sousa Tavares), “líder de seita” (Catarina Martins), “a maior vergonha que o estado de direito democrático acolheu como órgão” (Isabel Moreira), “pateta encartado” (Daniel Oliveira). Sobre ele escreveu Bruno Nogueira: “Cavaco Silva representa o pior que temos em Portugal. É um fardo de nada com um pin ao peito. É um cancro que mesmo depois de morto ainda mata”.

Mas as críticas em 2015 não vieram só do interior do país; também a imprensa internacional “crucificou” o Presidente, sobretudo por ocasião da indigitação de Passos Coelho como primeiro-ministro: “o Presidente da República menos estimado que Portugal alguma vez teve” (Tagesspiegel, Elisa Simantke); “O sr. Cavaco Silva está a usar o cargo para impor uma agenda política reaccionária” (The Telegraph, Evans-Pritchard); “Um golpe de Estado. Silencioso, mas um golpe de Estado” (Jacques Sapir, artigo no site da revista francesa Marianne).
O desprestígio da função presidencial é a consequência principal desta radicalização. Culpa necessariamente do próprio, que perdeu claramente a batalha – cada vez mais ingente – da comunicação e da reputação (o que começou a desenhar-se em 2009 com o caso das escutas); mas também do ambiente maniqueísta enraizado na nossa cultura política, onde a esquerda demoniza a direita e a direita demoniza a esquerda (chegando a eleger como alvo o único candidato da direita, só porque este tem a veleidade de procurar conquistar… o centro).
Ora se alguma coisa ficou clara nos últimos tempos é a importância das competências presidenciais. No recente impasse sobre o governo português, o papel do Presidente foi crucial. Com aparente surpresa geral, Cavaco Silva teve “a faca e o queijo na mão” durante o tempo suficiente para que os portugueses tomassem consciência da sua importância. Mas porquê tamanha surpresa? Por que razão as competências do Presidente ganharam tanto destaque num momento chave da vida política portuguesa? Essencialmente porque nas suas mãos estiveram quase todas as possibilidades: nomear ou não um governo da coligação sem maioria absoluta (nomeou); constituir um governo de iniciativa presidencial (não constituiu); manter em gestão o governo da coligação sem programa aprovado no parlamento (não manteve); designar António Costa como primeiro ministro de um governo PS com apoio parlamentar dos partidos à sua esquerda (designou).
Conhece-se a história e nem interessa o desfecho ou as motivações; interessa neste caso a dimensão dos poderes presidenciais. Afinal, Cavaco podia ter feito quase tudo. A história dirá, provavelmente, que decidiu bem (não tinha muitas alternativas). Mas fica a interrogação sobre a “raison d’être” do artigo 187º da Constituição, que não estabelece prazos nem critérios formais para a nomeação do primeiro-ministro: “tendo em conta os resultados eleitorais” deixa uma grande margem discricionária a quem nomeia, isto é, ao Presidente. É uma lacuna, um esquecimento, uma interpretaçãodatada e obsoleta; ou a síntese acabada da essência do nosso sistema político? Em todo o caso, é mais uma face do paradoxo de Belém.
O Presidente representa a República Portuguesa, garante a independência nacional, a unidade do Estado, o regular funcionamento das instituições. É o comandante supremo das Forças Armadas. É eleito directamente pelo povo em eleições democráticas. Dissolve a Assembleia da República, demite o governo, promulga e manda publicar as leis ou veta-as, declara o estado de sítio ou de emergência, dirige mensagens aos restantes órgãos de soberania, e faz muitas outras coisas, previstas constitucionalmente. E face a tanto poder, os portugueses não se mobilizam para as eleições do dia 24? E apesar de tudo isso, o folclore em torno da escolha do supremo magistrado da Nação é mais visível do que as propostas dos candidatos, o seu perfil, as suas ideias? Nos meios “bem informados”, nas crónicas dos cronistas da República, na voz das elites bem pensantes à direita como à esquerda (talvez mais à direita), critica-se o Presidente, menorizam-se os candidatos, desvaloriza-se a eleição. É o paradoxo de Belém.
Será que os portugueses não se sentem entusiasmados com as escolhas que lhes são oferecidas? Influenciam-nos as opiniões que lêem, vêem e ouvem na comunicação social, nas televisões, nos foros radiofónicos, nos posts e blogs, na voz melíflua dos chamados opinion makers – os fazedores de opinião? Ou será, finalmente, responsabilidade dos candidatos, que não dizem o que entendem dos poderes presidenciais, não reflectem sobre a pátria e os seus problemas, não explicam como pretendem influenciar o rumo da governação, preferindo concentrar-se em ataques pessoais, no passado em detrimento do presente e do futuro?
É sem dúvida um pouco de cada. E por causa disso, a menos de 15 dias de escolhermos o titular de um cargo de tamanha relevância, o país parece desmobilizado e indiferente. Volta a agitar-se o fantasma da abstenção. Belém vai ser habitado por um dos candidatos a estas eleições, alguém decisivo para o nosso futuro colectivo. Mas os portugueses, descrentes e desmotivados, hesitam sobre a importância do seu voto. É o paradoxo de Belém.
E quanto aos candidatos? Há muito defendo a candidatura de Marcelo Rebelo de Sousa. Comecei a fazê-lo nestas páginas há quase 2 anos. “Não sei se Marcelo se candidata, mas se se candidatar ganha”, escrevi então. Agora já sei que se candidata e, por isso, estou certo que vai ganhar. Mas não deixam de me impressionar as críticas, algumas virulentas, viradas para o passado, que o colam a uma imagem degradada e caricatural. Camaleão, marxista-grouxista (Marisa Matias), catavento (Maria de Belém), só se ouve a si próprio (Sampaio da Nóvoa). E talvez a maior de todas: a de que beneficia de décadas de comentário televisivo. A esta deveria responder que essa evidente vantagem resulta do seu mérito e de mais ninguém; às restantes, é ignorá-las, sobretudo as que representam um insulto.

Em vez disso, falemos de futuro: Marcelo é o único candidato que reúne condições de assegurar 3 objectivos essenciais para o país e para a função presidencial. O primeiro é unir o país em torno do Presidente; o seu prestígio não conhece fronteiras partidárias, a sua campanha é de afectos – de que os portugueses precisam depois de vários exercícios (presidenciais e não só) austeros e distantes – e o seu reconhecido génio tacticista permitir-lhe-á construir pontes hoje destruídas – e como o país precisa de união, de curar a feia ferida do maniqueísmo e do facciosismo! O segundo é voltar a prestigiar a função presidencial, para o que terá de evitar que se lhe cole, como ao seu predecessor, o rótulo de chefe de facção (não perceberá a direita exacerbada que o critica que isso também é do seu interesse?). Finalmente, para interpretar com sensibilidade política e competência jurídica as normas adoptadas pelo governo e pela Assembleia da República.
Nenhum outro candidato reúne estas 3 condições. Talvez fosse altura de deixar de criticar o candidato Marcelo Rebelo de Sousa com argumentos retrógrados, análises psicológicas primárias e uma espécie de pretensiosismo elitista, para avaliar com realismo e tranquilidade as condições objectivas do exercício da próxima presidência. Só assim se resolverá o paradoxo de Belém.

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