Com as eleições internas no PSD, regressou a discussão sobre a natureza ideológica do partido e até sobre a questão da ideologia na política. Infelizmente, a discussão tende a reduzir-se às referências ideológicas dos seus dirigentes. Não me interessa muito saber se os dirigentes do PSD se consideram sociais democratas, liberais, conservadores, de centro direita ou de centro esquerda, que livros leram ou como foram os seus percursos intelectuais. O que me interessa, e muito, é saber se o eleitorado do PSD está à direita ou à esquerda. Em democracia, os políticos servem os eleitores. Por isso, as ideologias destes é que são relevantes. Proponho discutir a ideologia política olhando para os eleitores portugueses e não para os dirigentes partidários. Confesso que tratando a questão desta perspectiva, a discussão parece estranha. Por vezes, os partidos onde votam as pessoas de direita discutem se são de direita. Alguém imagina o PS discutir se é de esquerda?

Em geral nas discussões sobre as ideologias políticas em Portugal há um ponto muito bizarro. Parece que a identidade ideológica é um exclusivo dos partidos políticos e que o grosso da população é basicamente indiferente a essas questões. É um erro enorme, talvez resultado de uma cultura democrática pobre. Todos os cidadãos têm preferências e referências ideológicas, as quais influenciam as suas opções e escolhas de vida. A decisão das escolas para os filhos, dos cursos, das universidades é uma opção ideológica. As escolhas profissionais são também muitas vezes decisões com uma dimensão ideológica. Até actividades tão simples como a compra de livros, a ida ao cinema, a concertos, a exposições, os locais onde se passa férias revelam preferências ideológicas.

As milhões de pessoas que tomam estas decisões ideológicas em Portugal são eleitores. São pessoas que determinam as suas vidas em liberdade relativa, hoje mais limitadas pelos seus recursos do que por um poder central autoritário. Muitas destas escolhas não só revelam educações e preferências ideológicas como depois reforçam os perfis políticos desses cidadãos. Uma pessoa que estuda economia na Universidade Nova, ou na Católica, e que depois trabalhe numa multinacional ou num banco, pensa e vota de um modo diferente de uma pessoa que estude sociologia no ISCTE e que depois dê aulas ou siga uma carreira académica. Uma pessoa que abra uma empresa, uma loja, um restaurante olha para a economia de um modo diferente de um funcionário público. Todos eles são percursos legítimos, e é o resultado de vivermos numa sociedade pluralista. Este pluralismo social manifesta-se politicamente no voto em partidos que defendem estratégias e prioridades distintas com as quais os eleitores mais se identificam e que melhor protegem os seus interesses, o que também é inteiramente legítimo.

A sociedade portuguesa é cada vez mais semelhante às outras sociedades europeias. Tal como em todos os países europeus, também em Portugal há um eleitorado mais conservador e mais liberal que vota à direita. Na maioria dos países europeus, há estudos que mostram quem são os grupos da sociedade que normalmente votam nos partidos de direita. Há cinco grupos dominantes. As populações rurais e agricultores, normalmente mais conservadoras. As profissões liberais das grandes cidades. Pequenos e médios empresários. Comerciantes. E executivos de grandes empresas, multinacionais e do sector financeiro. Claro que há excepções nestes grupos que votam em partidos socialistas, mas a regra é votarem mais à direita do que à esquerda.

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Estes grupos sociais votam em regra em partidos de direita porque são aqueles que defendem os seus valores e os seus interesses. As populações rurais conservadoras gostam de partidos que defendem hábitos e costumes antigos e não desejam revoluções sociais. As profissões liberais privilegiam a sua liberdade individual não querem um Estado que se intrometa na sua vida. Os empresários, os comerciantes e os executivos gostam de governos que respeitem e estimulem a iniciativa privada. Para todos estes grupos, o respeito pela propriedade privada é um direito fundamental, tal como são contra cargas fiscais elevadas. Querem votar em partidos que defendem estes valores e estes princípios. São o que chamamos, em traços gerais, eleitores de direita. Existem em Espanha, em França, na Alemanha, em Inglaterra, em Itália, na Holanda, na Bélgica, nos países escandinavos, na Grécia, nos países da Europa Central, na Irlanda. Existem em toda a Europa. Seria um mistério enorme se estes grupos sociais não existissem em Portugal. Obviamente, que o mistério não existe. Tal como em todos os outros países europeus, também há eleitores e grupos sociais de direita em Portugal.

Mas há uma diferença entre o eleitorado de direita em Portugal e nos outros países europeus. O eleitorado de direita em Portugal, as populações rurais, as profissões liberais, os pequenos e médios empresários, os comerciantes, sentem-se órfãos. Ninguém os quer representar. Mas mesmo assim eles são de uma admirável lealdade, e ano após ano, nas legislativas, nas presidenciais, nas europeias, nas regionais, nas autárquicas, eles votam mesmo naqueles que recusam ser de direita. Não deverá haver na Europa um caso de fidelidade tão mal respeitada e tão mal tratada como a do eleitorado de direita em Portugal.

E esta é igualmente a diferença entre o eleitorado de esquerda e de direita em Portugal. Os primeiros são bem tratados pelos seus partidos. Os segundos são ignorados pelos que deveriam ser os seus partidos. Os primeiros nunca são abandonados. Os segundos são desvalorizados. Os partidos de esquerda sabem organizar politicamente o seu eleitorado natural. Os partidos de direita em Portugal demitiram-se da primeira das suas obrigações: cuidar politicamente do seu eleitorado defendendo os seus valores e interesses. Os agricultores do Ribatejo, do Douro, do Minho, e dos Açores, os pequenos empresários de Aveiro, Braga, Viseu, Leiria, Algarve e Madeira, os advogados, os médicos, os economistas, os engenheiros, os empreendedores, os comerciantes, de Lisboa, do Porto e de Coimbra, querem vozes políticas que defendam as suas iniciativas e apostas profissionais, as suas propriedades privadas, as suas liberdades, os seus rendimentos e o direito a terem oportunidades. Estes grupos sociais, este eleitorado, são órfãos políticos na muito sui generis democracia portuguesa. A principal tarefa dos partidos de centro direita é fazerem uma coligação eleitoral entre os vários grupos sociais que por razões diferentes votam à direita.

Mais de de 40 anos depois do 25 de Abril, não estará na altura do PSD e do CDS de cuidarem dos seus? Se continuarem a não fazê-lo, outros o farão. E aí é que Portugal será mesmo um país de esquerda. Um país onde a iniciativa, os rendimentos privados e as liberdades individuais serão menos respeitadas e as oportunidades mais escassas.