Sic transit gloria mundi: num par de semanas, os salões do regime deixaram de se entreter com a habilidade de António Costa e a previsão de uma futura maioria absoluta, para se ocuparem da sua inabilidade e do prognóstico de nova frustração em eleições legislativas. Porquê? Porque o presidente se zangou com a repetição trágica dos incêndios? Porque o PCP se assustou nas eleições autárquicas? Ou porque Passos Coelho já não está no PSD para justificar a adesão oligárquica a António Costa?

A despreocupação de Costa durante os incêndios surpreendeu muita gente. Sem razão. Este foi o candidato que perdeu as eleições, e foi para o governo. O primeiro-ministro que sub-alugou o Estado ao sindicalismo comunista, e foi cumprimentado pela “paz social”. O chefe de governo que usou a boa conjuntura para incorrer em compromissos que ninguém sabe como sustentar numa conjuntura menos boa, e foi festejado por ter posto fim à “austeridade”. Em Junho, depois do massacre de Pedrogão-Grande, foi de férias — e subiu nas sondagens. Porque haveria Costa, em Outubro, de pensar que iria ser diferente? Só porque era a segunda vez que o Estado deixava morrer dezenas de pessoas num acidente previsível? Uma longa impunidade prega às vezes este tipo de partidas.

Costa foi útil à oligarquia. A bancarrota do Estado em 2011, o colapso do BES em 2014, e os processos judiciais contra Sócrates e Salgado abalaram a classe dominante. Foram destruídas as expectativas que fidelizavam as clientelas, e expostas as redes de cumplicidade entre os oligarcas. Num mundo cheio de “populistas”, poderia ser o fim. Pior: durante o ajustamento, Passos Coelho provou ser alguém em quem os oligarcas não podiam confiar para os defender. Não era só a CGTP que receava um seu segundo mandato. Mas eis que, no meio de uma derrota, António Costa agarra na oferta do PCP e substitui Passos no governo. A oligarquia pôde assim colher os frutos do ajustamento sem o risco de reformas inconvenientes. As televisões do regime, como seria de esperar, transformaram-se num coro de louvor a Costa. Como poderia ocorrer ao primeiro-ministro que fogos que acontecem todos os anos, com uns mortos a mais ou a menos, iriam perturbar o seu idílio?

Algo mudou. Os juros continuam a descer, a economia a crescer, o PCP a votar com o governo. Mas começam a aparecer, aqui e ali, dúvidas sobre a produtividade (a piorar), inquietações sobre a poupança (em declínio), queixas sobre a carga fiscal (persistente, sob outros formatos). Até quando bastarão cativações e cortes de investimento para compensar os custos do colaboracionismo comunista? Mas para Costa, o pior talvez seja isto: Passos Coelho foi-se embora, levando com ele o perigo do único político que a oligarquia não controlava. Com Passos de fora, há agora a possibilidade de outros entendimentos, mais flexíveis e sem as despesas da maioria social-comunista. Ora, é provável que o regime tenha começado a duvidar que António Costa seja homem para uma eventual próxima etapa. Não só porque qualquer direcção do PSD teria dificuldade em justificar compromissos com ele, mais do que com qualquer outro líder do PS, mas sobretudo porque Costa já provou que não é bom. O presidente da república bem tentou integrá-lo no regime de afectos em vigor, apresentando-o como um bonacheirão. Mas eis Costa, à primeira oportunidade, a exibir a frieza desajeitada de um velho oligarca arrogante e cínico, mais disponível para a negociação de bastidores do que para o debate público. Nas eleições de 2015, Costa demonstrou a sua capacidade para, sozinho perante uma baliza aberta, chutar ao lado. Não dá sinais de ter melhorado.

A oligarquia fala muito de um “novo ciclo”. Todos pensaram que tivesse a ver com Passos. E se também tiver a ver com Costa? Depois do homem do “ajustamento”, por causa da sua independência, estará mais perto do que pensávamos o dia de mandar embora o homem da “transição”, por causa das suas limitações?

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