Porque é que Portugal arde?, pergunta a imprensa. Esta é a época do ano em que os fogos florestais enchem o país de bombeiros de bancada, silvicultores de rede social, e paisagistas de café. Todos têm uma resposta. Mas há uma regra para o jogo: seja qual for a resposta, não pode ser a mesma para a pergunta porque é que a Califórnia, a Austrália ou o sul de França também ardem. A resposta precisa de ser muito específica, muito portuguesa.

Também por isso, as chamadas “condições naturais” são quase sempre menosprezadas. Os iluminados nacionais nunca reconhecem limites. Para eles, tudo depende da vontade – e, muito particularmente, da vontade do Estado. Durante anos, ai de quem se atrevesse a falar do clima, do relevo ou dos solos para explicar a diferença entre a agricultura portuguesa e, por exemplo, a agricultura holandesa. É claro que tudo se devia à “ignorância” dos lavradores portugueses. E agora, ai de quem comece por mencionar temperaturas altas, ventos fortes ou acessos difíceis a propósito dos incêndios. Tudo tem de se ficar a dever ao tipo de coisas que é fácil mudar com papel e caneta — planos, ordenamentos, leis, portarias.

Estou a insinuar que ninguém então tem culpa de nada? Não. A bem dizer, nunca há “condições” totalmente “naturais”. Há duzentos anos, Portugal era uma terra de cumeadas nuas, charnecas, brejos e areais. Os oficiais de Wellignton ainda se surpreenderam com a enorme nuvem de pó que o vento levantava nos cabeços despidos dos arredores de Lisboa. A partir da década de 1860, o Estado decidiu arborizar o território. Foram escolhidas espécies de crescimento rápido. A política de reflorestação contrariou a natureza, o uso tradicional da terra, e os direitos de propriedade. O Estado apoderou-se de terras comunitárias para plantar os seus arvoredos instantâneos. A partir de 1919, os proprietários de incultos com mais de 100 ha foram obrigados a imitar o Estado. As populações nunca se entusiasmaram. Logo em 1888, no Gerez, houve confrontos e violências, que se repetiram pelo século XX. Em 1958, Aquilino Ribeiro aproveitou essa história de resistência à florestação para o seu romance Quando os Lobos Uivam. Muitos incêndios florestais ainda fizeram parte dessa luta das populações rurais contra a colonização estatal do país.

A partir da década de 1960, aconteceu algo que ninguém previra. Todos os regimes e governos portugueses até então tinham pressuposto que Portugal seria sempre uma sociedade rural, cheia de gente nos vales e serras do interior. Ninguém estava preparado para o êxodo maciço da população dos campos. Em poucas décadas, desapareceram os povos e os gados que tradicionalmente limpavam os matos. Pior: desfez-se a ordenação humana do território, aquela que correspondia a uma vida antiga, e não a opiniões de gabinete municipal. Sobre courelas e quintas esquecidas, o mato cresceu, num ímpeto de arborização selvagem. O arvoredo das políticas florestais foi assim reforçado pelos matagais do abandono rural. Entretanto, nos arredores de centros populacionais, espalharam-se novas casas, fábricas e armazéns por entre o mato dos novos baldios. O combate aos fogos concentrou-se, como seria de esperar, na defesa de habitações e outros edifícios. O resto, quando há incêndio, arde.

Os fogos florestais fazem parte do meio ambiente. São um resultado da natureza, mas também das políticas e das transformações sociais dos últimos séculos. Justificam preocupação e investimento, mas talvez não esta repetida rábula estival de palpites e de indignação. Nunca teremos um país sem incêndios. Pode-se combater um fogo ou prender um pirómano, não se pode combater a natureza nem prender a história.

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