Uma coisa são os santos populares, outra muito diferente é o que os populares acham dos santos… Expressões quase homónimas podem ter, na verdade, significados muito diferentes: por exemplo, não convém confundir as obras-primas do mestre, com as primas do mestre-de-obras!

Os santos populares – como o nosso Santo António – são grandes vultos da história universal, cuja memória a Igreja liturgicamente celebra; mas a sua versão popular por vezes não vai muito além do bailarico, das sardinhas, das fogueiras, da sangria, das quadras brejeiras e dos manjericos. Embora sejam louváveis os festejos populares, os santos são para tomar a sério e bom seria que assim fossem também as respectivas comemorações que, por vezes, são mais superficiais e profanas do que sinceras e profundas manifestações de verdadeira piedade.

Quando, na véspera do dia de Santo António, perguntei a uma jovem aluna de um colégio de que sou capelão se recorria à sua intercessão, respondeu-me que, seguramente por sugestão dos pais, lhe pedia que arranjasse um lugar de estacionamento para o carro! Como os casamentos andam pelas ruas da amargura, o desgraçado do Santo António serve agora, pelos vistos, de arrumador … Não é que não se deva recorrer aos santos para necessidades tão prosaicas, mas é pena que se perca, até entre os cristãos, a memória destes ilustres bem-aventurados, hoje substituídos por uma qualquer celebridade, como o famoso jogador de futebol a quem já se fez, na sua terra natal, uma estátua, um busto e até se deu o nome ao aeroporto local!

Uma pecha que continua a prejudicar a popularidade dos santos é a suposição de que, no fundo, eram uns sonhadores, que nunca chegaram a saber bem o que o mundo ou a vida são … Daí a ideia de que um ‘santinho’ é, afinal, um ingénuo, quase um alienado, fazendo jus à sentença marxista, que dizia ser a religião o ópio do povo.

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A verdade, graças a Deus, é bem diferente, como se pode ler na Vida de Santo António de Lisboa, de Aloisío Tomás Gonçalves, agora reeditada pela editora Paulus, com excelente prefácio de Henrique Raposo. O nosso tão popular e querido Santo António de Lisboa, de Pádua e do mundo inteiro, foi um grande santo, mas foi também um grande sábio que, na verdade, de ‘santinho’ não tinha nada. Frei José de Sousa Monteiro, franciscano e sócio efectivo da Academia das Ciências, afirmou, em finais do séc. XIX, que S. António dominava todas as ciências e artes: “nada enjeita o seu engenho agudo. Expõe de Galeno, no Passionário, a teoria sobre as quatro espécies de febre, e de Vegécio, as qualidades de um general na guerra”.

Se o único português a quem foi outorgado o título de Doutor da Igreja era douto nas ciências profanas, mais sábio era ainda no saber teológico: o Papa “Gregório IX ouviu-o interpretar os livros santos e chamou-lhe, maravilhado, Arca do Testamento”. Foi também esta a opinião dos seus contemporâneos, pois citava de cor a Bíblia e os Santos Padres, com uma erudição que, por vezes, pecava por excessiva.

Outro receio comum é o de que a muita devoção possa levar ao fanatismo. A santidade exige um supremo amor a Deus e ao próximo, mas a verdadeira caridade nada tem de excesso: o fanatismo não é o grau excelso da virtude, mas o seu contrário. Por isso, Aristóteles ensinava que o acto virtuoso é o que se situa num ‘justo meio’, e Tomás de Aquino calibrava a virtude pelo critério da ‘recta razão’: onde não há razão, não há mérito, nem muito menos santidade cristã.

Uma devoção que desrespeite a liberdade das consciências dos ateus, agnósticos ou crentes de outras religiões, é incompatível com o Evangelho e contradiz a doutrina e a prática do próprio Jesus Cristo. Os santos são o exemplo perfeito do que deve ser um verdadeiro cristão; não os que, tergiversando os ensinamentos do Mestre, “manso e humilde de coração” (Mt 11, 29), negam, pela violência dos métodos evangelizadores ou das práticas repressoras, a bondade da pacífica mensagem cristã.

Lê-se na antiga Legenda Benignitas, que António de Lisboa não se cansava de lutar contra a heresia, “de tal maneira que, por toda a parte, é chamado vulgarmente incansável martelo de hereges”. Mas erraria quem associasse a este título uma conduta fundamentalista ou intolerante em relação aos que não pensavam de acordo com a sua fé. Na luta contra a heresia albigense, a atitude de Santo António sempre foi de tolerância e de respeito pela liberdade das consciências: “Assim como não se lança o fogo à casa onde repousa um morto – escreveu o Santo alfacinha – assim não deveis destruir essa casa em que Deus tende a desaparecer sob os golpes [da heresia], especialmente quando podeis ter esperança de que Ele a ressuscitará para a glória. Mas, mesmo que tivésseis a certeza da obstinação, deveis sempre inclinar-vos para a tolerância, porque Deus é o primeiro a dar-nos o exemplo. Tolerai, repito, a fim de que isso possa servir de exemplo”.

Outra recorrente acusação feita aos santos é o do seu suposto modo de ser antissocial: parecem tão obcecados pelas suas crenças que não são capazes de ouvir os outros, nem de dialogar. Talvez o sejam os fanáticos, mas não os santos que, pelo contrário, são amáveis, sobretudo com os que, por não serem crentes, mais carecem da sua caridade. Assim foi o próprio Cristo e, como ele, segundo conta João Rigauld, António de Lisboa: “Certo dia, em uma cidade de Itália, foi o santo convidado por alguns hereges a jantar. Aceitou o convite, na esperança de os converter dos seus erros e de os confirmar na fé, a exemplo do Salvador que, por semelhante motivo, comia com os publicanos e os pecadores”.

Em boa hora o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, no encerramento do Simpósio Internacional Antoniano Exulta Lusitania Felix, anunciou que Santo António, o lisboeta mais mundialmente famoso, vai ter um Centro de Estudos e de Investigação em Lisboa. Se a sua vida e obra for melhor conhecida, decerto que a nossa juventude, estimulada por um tal exemplo, será mais douta, mais tolerante, mais caridosa e, sobretudo, muito mais feliz.