Por disposição natural e defeito de formação, acontece-me com frequência, diante de declarações graves e ponderosas, prestar mais atenção ao modo como são proferidas do que ao que em rigor dizem. Foi o que me aconteceu na semana passada quando, ao silêncio de Montenegro, a pátria dos comentadeiros, aflita e despeitada, exigiu desagravo e reparação.

Afeitos à promíscua mancebia com o poder que há anos lhes providencia cochicho, gelosia e gamela, deram por si sem outra reação que não a do ressentimento ao insólito atrevimento de alguém que, após a indigitação, ousou a petulância do silêncio e do recolhimento, imediatamente classificados como – oh afinidade electiva! – bizarros. Que palavra prodigiosa, bizarro!

Acontece que, ao contrário do que se pensa, bizarro não significa de todo extravagante, estranho nem, como pretende o lumpencomentariado, esquisito ou excêntrico. Bizarro significa etimologicamente “pontada”, “picadela”.

A palavra deriva de uma onomatopeia romance que transporta consigo uma clareza quase infantil: aquele bzz de um incómodo insecto que escolhe os lânguidos crepúsculos de vinho e verão para nos zunir o corpo e a paciência; aquela picada de abelha ou mosquito que de repente nos faz saltar, nos desperta do torpor, e que nos enlouquece, como cavalos subitamente enlouquecidos por um formigueiro, misto de dor e espanto, e que consigo transporta uma maneira nova, inédita – na verdade, ainda não dita.

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Eis o sentido de perseguir e recorrer a etimologias, sempre bizarras e indómitas: colmatar este abismo de linguagem que nos separa da realidade; des-construir uma palavra para nos re-construirmos enquanto pessoas. Na verdade, sentirmo-nos picados por aquele sentido perdido nas dobras da memória ou nos museus de sabe-se lá que passado para nos descobrirmos plenamente vivos, firmemente ancorados no nosso presente. E, desse modo, também nós imediatamente prontos para mordê-la, picá-la, esta realidade em que vivemos, porque o que importa não é o que acontece, mas o que se faz com o que acontece. Importa sobretudo como tudo isso permanece dito.

As palavras são a nossa forma de pensar o mundo, o meio de que dispomos para definir o que nos rodeia e, portanto, inevitavelmente, para nos definirmos a nós mesmos. Cada vez que escolhemos uma palavra damos ordem ao caos, conferimos contorno e corpo à realidade; cada vez que pronunciamos uma palavra ela torna-se um reflexo nosso, ela revela-nos. Sem a linguagem, estaríamos condenados a tactear, confusos, incapazes de expressar a realidade e o que sentimos. É precisamente por essa razão que devemos ter um cuidado extremo com as palavras.

Os antigos sabiam que a vida é uma obrigação moral a cumprir em plenitude e dignidade. Em primeiro lugar, por intermédio das palavras que escolhemos para nomeá-la. Acreditavam convictamente numa perfeita coincidência entre significante e significado, entre o nome e a realidade graças à capacidade de dizê-la – e de fazê-lo graças ao poder criador da linguagem.

Também o contrário era verdadeiro, evidentemente: se algo não tivesse nome, ou por covardia não fosse pronunciado, então na verdade não existia. “Não dizer” (ou “maldizer”, isto é, nomear de forma descuidada) não significa que algo não seja real ou que nunca tenha realmente acontecido, mas que, sem nome e sem palavras, não está aqui entre nós. Sim, existe, mas como que à revelia.

O adjetivo grego étymos significa “verdadeiro”, “real”, “genuíno”: daí deriva a nossa palavra etimologia, cunhada para definir a prática de conhecer o mundo através da origem das palavras que usamos. Transporta consigo toda a potência do logos, concepção filosófica que, a partir do verbo légo, significa, por esta ordem precisa e inegociável, “pensar para compreender”. E apenas depois dizer para contar.

Quem julga o recurso à etimologia para decifrar a realidade um hobby inócuo ou uma perda de tempo desiludir-se-á: a etimologia sempre significou simultaneamente militância e resistência aos acidentes da vida e aos erros do mundo. Manejar étimos exige coragem, franqueza e um ousado pacto de lealdade para com a realidade: eles não são de todo frágeis como à primeira vista poderão parecer, mas sólidos e indeléveis na sua presença viva nas palavras que usamos todos os dias. São rocha, não cinza.

Com a sua integridade, as etimologias obrigam-nos a revelar-nos, a compreender-nos, a despojar-nos das nossas mil justificações e a sermos etimologias diante das nossas próprias vidas: homens e mulheres reais, autênticos, fiéis.

Cristina Campo, uma das maiores poetisas e escritoras italianas do século XX, escreveu uma frase de cortante precisão: «O meu pai é um dos últimos a saber o nome das coisas, e, portanto, a possuir ainda uma realidade». Todos nós pagamos um preço pelo que nos permitimos ser através das nossas palavras – esse preço é, muito simplesmente, a vida que levamos.