Um olho é projetado numa tela. A pupila está dilatada e pode ver-se a íris em alta definição. Parece que estamos a assistir a uma cena do filme “Laranja Mecânica”, de Stanley Kubrick. Uma imagem quase aterradora, não fosse o contexto em que, na realidade, estamos: uma consulta de oftalmologia à distância entre a sede do Instituto Marques Valle Flôr (IMVF), em Lisboa, e o Hospital Dr. Ayres de Menezes, em São Tomé e Príncipe.

É a primeira consulta de oftalmologia à distância no mundo. Foi realizada na manhã desta quarta-feira, em Lisboa, e contou com a presença do Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação, Luís Campos Ferreira. Antes de a consulta começar, Carlos Telles de Freitas, membro do conselho executivo do Instituto Marquês de Valle Flôr, ocupou a posição de cicerone da cerimónia de demonstração do TELEYE – o software que torna possível realizar este tipo de consultas à distância, único no mundo.

O TELEYE é uma parceria entre o IMVF com a PT Inovação e outros parceiros da área das tecnologias de oftalmologia, que vai ajudar no rastreio, prevenção e tratamento de várias patologias: erros de refração, cataratas, glaucoma, traumas oculares, entre outros casos.

Nesta quarta-feira, o consultório de oftalmologia ficou dividido entre São Tomé e Portugal, via internet. No perímetro da sala em Portugal, estão expostos batuques e outras recordações de África. As janelas estão fechadas. Nem um feixe de luz natural. No centro, um computador portátil comum, com uma webcam ligada – todo o equipamento necessário deste lado para se realizar a consulta.

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Do lado de lá, pode ver-se um retinógrafo, um auto-refractómetro e um tomómetro: equipamentos iguais aos que são utilizados em qualquer consultório em Portugal, todos ligados ao software TELEYE. Só não está lá um médico. “As luzes vão ser apagadas”, diz Carlos Telles de Freitas, quando se ouve o tom de toque da primeira chamada para consulta que chega de São Tomé. A oftalmologista Ana Almeida senta-se em frente ao computador.

Ver “com os próprios olhos”

O primeiro paciente foi João Carvalho, cidadão são-tomense. De Portugal, Ana Almeida dá instruções a Luís Pereira, chefe da missão de oftalmologia do IMVF em São Tomé. Trocam impressões. Sempre que João é analisado com recurso a alguns dos equipamentos de oftalmologia, essas imagens são enviadas para Ana Almeida e ficam gravadas no ficheiro de paciente. É como se fosse ela a espreitar pelo microscópio que vê em detalhe o olho de João. Luís Pereira é só um intermediário.

No interface do programa da TELEYE, aparece o nome do paciente, o da oftalmologista e do técnico responsável por operar as máquinas em São Tomé e Príncipe. Uma espécie de Skype otimizado para fins médicos.

Técnico e médica chegam à conclusão que João Carvalho tem uma catarata no olho esquerdo e que vai ser necessária uma cirurgia. Tudo isto sem qualquer dúvida no diagnóstico. Como se fosse uma consulta presencial, garante a oftalmologista. Em pouco mais de 20 minutos, o diagnóstico estava feito.

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A seguir, é a vez da paciente Lília Costa, 15 anos. Antes de a consulta começar, o Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e Cooperação é convidado a sentar-se em frente ao computador e ver “com os próprios olhos” o software que torna possível este tipo de consultas. “Um avanço” no campo da saúde e cooperação, garante, lembrando as vantagens da telemedicina.

Logo depois do primeiro teste, percebe-se que Lília tem seis diopetrias em cada olho, e é por isso que se queixa de “não ver ao longe”. Tudo o que Lília precisa é de uns óculos, que podem ser enviados de Portugal, de forma gratuita, graças a algumas instituições que apoiam o IMVF. Um problema simples, mas que em São Tomé e Príncipe podia causar a incapacidade de Lília a longo prazo.

Quando a consulta de Lília termina e Luís Campos Ferreira começa a conversar com o outro lado, São Tomé e Príncipe, onde está presente a ministra da Saúde são-tomense,  diz de forma bem humorada: “Boa tarde, bons olhos os vejam.”

Um problema sem solução até… 

Não existem oftalmologistas em São Tomé e Príncipe. Nem na capital. É difícil imaginar tal cenário. Estão a dramatizar, dirão alguns. Mas é a verdade. A verdade que a oftalmologista Ana Almeida, 31 anos, viu com os próprios olhos e respetivos óculos, pela primeira vez, em 2012, quando esteve durante duas semanas no Hospital Dr. Ayres de Menezes, a dar consultas. Daí a necessidade de criação do TELEYE.

“Estamos a falar de uma população muito, muito carenciada”, diz Ana Almeida, em declarações ao Observador. Não faltam só oftalmologistas em São Tomé, “faltam médicos”. E, por isso, a oftalmologia nunca foi considerada uma prioridade, quando existem outras “necessidades mais prementes”, explica.

Para operar os equipamentos no Hospital Dr. Ayres de Menezes não é necessária a presença de um oftalmologista. Basta “um técnico treinado”, explica. E o treino é muito rápido. Grimaldi, a médica de clínica geral que serviu de técnica na segunda consulta começou o treino “há três dias”, revela. E uma das principais funcionalidades em que se vai puder utilizar o TELEYE vai ser no “follow up cirúrgico”, um dos maiores problemas até à data.

Ana fala com os dedos entrelaçados e com as palmas das mãos viradas para o chão, ao nível da cintura, como uma bailarina que se prepara para ficar em bicos de pés. Todos os jornalistas querem fazer-lhe a mesma pergunta. Podemos afirmar que um diagnóstico à distância, como este, tem o mesmo nível de segurança que um presencial? “Sim, sem dúvida.”