Para sempre é muito tempo. Na vida de um homem de 80 anos ou na de um garoto com 12, Manoel de Oliveira é uma espécie de sempre. O nome não é estranho a ninguém. “Eu sou incapaz de conceber o infinito, e ainda assim eu não aceito a finitude”, escreveu em tempos Simone de Beauvoir, uma filosofa e escritora que nasceu no mesmo ano que o realizador (1908) — a autora de “O Segundo Sexo” morreu há quase 30 anos. Manoel de Oliveira parecia ser infinito, e agora resta aos apaixonados pela sétima arte agarrarem-se ao seu legado. Aos filmes. Foram muitos em 90 anos de carreira.

Os olhos do cineasta esboçavam uma vida que só sabia caminhar para a derrota. Alguém que viveu 106 anos ganhou e perdeu muita coisa. Este homem nascido na Invicta viu o mundo virar-se do avesso muitas vezes.

O cinema deu uma cambalhota, com os filmes mudos a serem ultrapassados pelo som e a voz. O preto e branco, romântico para muitas almas no século XXI, era a única solução. Mas a revolução chegaria e Manoel de Oliveira acabaria por ver a inquietação da vida, a tal que sabia cantarolar de trás para a frente o verbo “perder”, ganhar cor no grande ecrã. E terá pensado no digital. Mas, afinal, como mudou o mundo enquanto Manoel de Oliveira esteve entre nós?

 

Do Regicídio às duas Guerras

Imaginar o que é crescer no início do século XX e viver até 2015 é um belo exercício. Daquelas epopeias impossíveis que andam de mão dada com magia, poesia, imaginação, melancolia e dúvida. A caminhada foi longa. O realizador nasceu 11 meses depois do regicídio, que tirou o rei D. Carlos do trono e abriria a porta à República. Ainda nem sabia falar e já começava a viver algo histórico: uma mudança de regime. Portugal mudou e voltaria a mudar. Durante o Estado Novo teve problemas com alguns filmes e chegou a ser preso pela PIDE.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Mas também o mundo deu os seus trambolhões e trocou galhardetes em forma de pólvora e dinamite, que imitavam o barulho de tambores. A Primeira Guerra Mundial estalou quando o então futuro cineasta tinha apenas cinco anos de idade, uma altura em que devia ser complicado explicar e compreender por que se devoravam homens por pedaços de terra. A Segunda Guerra Mundial, com outros truques, estratégias e armas renovadas, deixou o mundo num frenesim quando Manoel de Oliveira tinha 30 anos. Foi, aliás, durante esta guerra que realizaria uma das suas grandes obras: Aniki Bóbó. Quem sabe cantar a famosa música?

Antes, o jovem Manoel de Oliveira aventurara-se em corridas de automóveis, natação e até atletismo, mas a grande paixão era e seria o cinema. E a carreira e opções seriam fieis a essa paixão, que recusou moldar para agradar a toda a gente. Numa conversa para um anúncio publicitário, Fernando Trueba, um realizador espanhol, dizia que a “juventude está sobrevalorizada”. Trueba desanima ao ver que tudo, segundo ele, é feito para os jovens, tudo muda para agradar o público mais novo.

Manoel de Oliveira rejeitou seguir esse caminho. Foi fiel aos planos estáticos e longos. Aos diálogos desconcertantes, compridos, maçudos em alguns casos. Quem entende do assunto fala em realismo e objetividade, mas também menciona que pouco evoluiu no estilo. E é aqui que encaixa a história da lealdade para com a paixão. Fez como quis. Sempre.

 

Do cinema mudo ao Youtube

Voltando à história que serve de mote para este texto — o que viu Manoel de Oliveira durante 106 anos –, o cinema sofreu também vários safanões. As técnicas evoluíram, as câmaras e as películas transformaram-se, o som roubou o espaço do que era calado, a cor avivou a televisão e o cinema. Surgiram também os efeitos especiais. A clássica forma de fazer cinema deu lugar ao digital, à era do YouTube e das redes sociais. Oliveira até viveu de perto uma destas revoluções tecnológicas quando participou, como ator, no primeiro filme sonoro português: “Canção de Lisboa” de José Cottinelli, em 1933.

Quanto a outros avanços tecnológicos basta mencionar a televisão, que até já convida a navegações online. E a internet? Ui, a internet, esse mundo sem fim. Imaginam, em 1920, dizer-se ao jovem Manoel que um dia poderia ler jornais, consultar informações e ver filmes num aparelho que estava longe de existir? O computador, a internet, os relógios, os telefones, os iPods, etc, mudaram a forma como vivemos. E Manoel de Oliveira viveu todas essas mudanças.

 

Do primeiro voo da TAP, ao Titanic até ao Homem na Lua

Noutro campeonato, o realizador viu também o nascimento da TAP — a companhia celebrou 70 anos em 14 de março de 2015 –, que encurtaria o tamanho do mundo aos olhos de Portugal. O primeiro voo aconteceu a meio da década de 40, com o voo Lisboa-Madrid, a que se seguiria a ligação Lisboa-Lourenço Marques. As locomotivas a vapor dariam lugar a confortáveis comboios e TGV. Esta conversa não teria fim se abordássemos os avanços na ciência e medicina.

E a ida do homem à lua em 1969? Quando Armstrong deu os famosos pequenos passos, Manuel de Oliveira já tinha 60 anos e havia realizado recentemente “Acto de Primavera” (1963), “A Caça” (1964), “Villa Verdinho — Uma Aldeia Transmontana” (1964) e “As Pinturas do Meu Irmão Júlio (1965). Mais: quando o Titanic, o famoso navio que fazia a ligação Southampton-Nova Iorque, encontrou o trágico destino num iceberg, o realizador portuense estava ainda longe da fama, mas já era um rapazinho de quatro anos. E teria tanto para ver acontecer.

Da Grande Depressão à Guerra do Vietname

Se agarrarmos em episódios marcantes na História então… por onde começar? A Grande Depressão dos anos 30, o Holocausto, as causas e a morte de Gandhi, o Apartheid na África do Sul, a prisão de Nelson Mandela, a Guerra Fria, o discurso de Luther King, o combate pelos Direitos Humanos, o assassinato de Kennedy, a guerra do Vietname e tantas outras. Manoel de Oliveira respirou todas estas realidades, todos estes acontecimentos, transcritos nos jornais da época, na rádio e depois televisão.

De Artie Shaw a Taylor Swift

Quanto à música, um dos hits do ano em que nasceu, 1908, saltava das cordas vocais de Alan Turner. Com 15 anos, uma das canções da moda era “Down Hearted Blues” de Bessie Smith. Aos 30 ouvia-se Artie Shaw, The Andrews Sisters e Ella Fitzgerald, por exemplo. Aos 50 quem brilhava lá fora eram os The Kingston Trio, com “Tom Dooley”. Agora, aos 106 anos, o que está na berra são artistas com ginga e bem-parecidos como Pharrell Williams e Taylor Swift.

O que temia este homem? Não ter tempo. Ironicamente, Oliveira até goleou num jogo contra si próprio na arte de prever o futuro, pois em 1982 realizou um filme para ser exibido após a sua morte. A ideia caiu por terra. Este senhor teria ainda muito para viver. E filmar. “Tenho uma vontade enorme de filmar e fico muito triste se o não puder fazer. O tempo passa excessivamente depressa”, disse em 2008, numa entrevista à revista Visão. O tempo esgotou-se. E o mundo vai voltar a mudar. Agora sem os olhos derrotados e tristes de Manoel de Oliveira, mas com um legado a perder de vista. Basta ler alguns artigos na imprensa internacional para se compreender um bocado melhor a dimensão do realizador. The end.