Ainda sem confirmação científica inequívoca, o aumento do número de casos de microcefalia na América do Sul tem sido atribuído à infeção com vírus zika, mas um grupo de médicos argentinos aponta o dedo aos pesticidas usados para matar e controlar os mosquitos que transmitem o vírus. As instituições oficiais do Brasil desmentem, os cientistas confirmam que esta ideia não faz sentido e a base de argumentação dos médicos argentinos poderá não passar de um mal-entendido.
“Um relatório recente do grupo de ‘Médicos das Povoações Fumigadas’ alegou que o surto de microcefalia se deve ao uso de pesticidas para controlar os mosquitos que transmitem o vírus zika”, diz Ian Musgrave, professor de Farmacologia na Universidade de Adelaide (Austrália). “Apesar de os indícios não serem conclusivos em relação ao zika ser o responsável pelo aumento de microcefalia no Brasil, o papel do pyriproxyfen não é, simplesmente, plausível.”
Os médicos argentinos, os médicos brasileiros citados de forma errada, as entidades oficiais e investigadores que não estão diretamente envolvidos na investigação têm uma palavra a dizer sobre o caso que o Observador aqui lhe resume.
Basear uma afirmação num mal-entendido
Um relatório da Rede Universitária de Ambiente e Saúde (Reduas), composta por médicos argentinos, afirma que “as malformações detetadas em milhares de crianças que vivem em áreas onde o Estado brasileiro adicionou pyriproxyfen à água potável não é uma coincidência”.
O relatório, coordenado pelo pediatra Medardo Ávila Vázquez, acusa o governo brasileiro de querer culpar o zika na “tentativa de ignorarem a própria responsabilidade e pondo de parte a hipótese dos danos diretos e cumulativos dos químicos”. As críticas estendem-se também à Organização Mundial de Saúde (OMS) e à Organização Pan-Americana de Saúde (PAHO), que estes médicos acusam de “esquecerem facilmente que os seres humanos, cada um de nós, desenvolvem uma série de processos embrionários nos quais passamos por vários estádios diferentes”.
“Também ignoram facilmente que os humanos têm 60% dos genes ativos semelhantes aos dos insetos, como os mosquitos Aedes“, diz o relatório, sem citar qualquer fonte. Mas Ian Musgrave, professor de Farmacologia na Universidade de Adelaide, refere que o inseticida afeta uma parte do “controlo hormonal que não existe em organismos com coluna vertebral, como os humanos, e, como resultado, o pyriproxyfen tem uma toxicidade muito baixa em humanos”.
O problema é que este grupo não fez qualquer tipo de investigação sobre o potencial efeito do pyriproxyfen (ou qualquer outro inseticida) no aparecimento de microcefalia nas crianças. Grande parte das afirmações são baseadas numa nota técnica emitida pela Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), mas a interpretação vai além do que os profissionais brasileiros tentaram dizer.
Pesticidas não são a melhor maneira de vencer o mosquito
A nota técnica da Abrasco não pretendia estabelecer qual a causa do aumento do número de casos de microcefalia no Brasil, mas criticar a estratégia de combate ao mosquito Aedes aegypti, responsável por transmitir o vírus zika, mas também dengue e chikungunya. No máximo alertaram que “o lado invisível dos danos ao ambiente e à saúde humana, decorrentes do uso de produtos químicos no controle vetorial, ainda não foi devidamente estudado ou revelado às populações vulneráveis, incluindo os trabalhadores de Saúde Pública”.
“A expansão territorial da infestação pelo Aedes aegypti atestam o fracasso da estratégia nacional de controlo”, afirmam os profissionais de saúde na nota técnica. “Para a Abrasco, a degradação das condições de vida nas cidades, saneamento básico inadequado, particularmente no que se refere à dificuldade de acesso contínuo a água, recolha de lixo precária, saneamento básico e descuido com a higiene de espaços públicos e particulares, são os principais responsáveis por este desastre.”
Produto cancerígeno
↓ Mostrar
↑ Esconder
O Malathion, usado para combater mosquitos na fase adulta, é um agrotóxico organofosforado considerado pela Agência Internacional de Pesquisa em Cancro (IARC) como provavelmente cancerígeno para os seres humanos.
Embora não estabeleçam qualquer relação com a microcefalia, a associação alerta para problemas de saúde que podem advir da exposição a esses pesticidas. “Esses produtos, como por exemplo o Malathion, são neurotóxicos para o sistema nervoso central e periférico, além de provocarem náuseas, vómitos, diarreia, dificuldades respiratórias e sintomas de fraqueza muscular, inclusive nas concentrações utilizadas no controlo dos vetores [mosquitos]”. A Abrasco refere que estes produtos, que também têm fortes impactos ambientais, “só interessam aos produtores e comerciantes desses venenos”.
A Reduas vai mais longe e refere que o produto é fabricado pela Sumitomo Chemical, um parceiro japonês da Monsanto – uma empresa muitas vezes criticada pela área de atividade: produção, uso e patenteamento de produtos geneticamente modificados.
As populações mais carenciadas têm pior saneamento básico e também um sistema imunitário mais fragilizado, portanto são mais afetadas com doenças como a dengue. Para tentar controlar este problema intensifica-se a utilização de químicos para combater o mosquito, o que para a Abrasco só ajuda a tornar estas populações ainda mais frágeis, com um sistema imunitário ainda mais comprometido.
Em vez do uso de inseticidas nos criadouros dos mosquitos – locais de água parada onde o mosquito põe os ovos e as larvas se desenvolvem -, deviam ser tomadas medidas de prevenção: não acumular lixo no exterior, eliminar todos os locais onde se possa acumular água (como uma garrafa ou uma bacia viradas para cima) e tapar todos os reservatórios de água para consumo humano – para que não fosse preciso colocar inseticidas aí.
O inseticida é recomendado pela OMS
“O Ministério da Saúde recomenda atualmente vários larvicidas para controlo do Aedes aegypti, em substituição do temperos (outro pesticida) que não será mais utilizado, devido a resistência do vetor [o mosquito] a este inseticida, na maioria dos municípios do país”, referem as “Orientações técnicas para utilização do larvicida pyriproxyfen (0,5 G) no controle de Aedes aegypti“.
No mesmo guião, é referido que o pyriproxifen tem a recomendação do grupo de Pesticidas da OMS. E este é mais um dos pontos de crítica da Abrasco: a falta de diálogo, dentro da OMS, entre o grupo que faz recomendações sobre pesticidas e aqueles que têm preocupações com o ambiente, com o saneamento ou com a promoção da saúde.
“O pyriproxifen está entre os produtos aprovados por esse comité [World Health Organization Pesticed Evaluation Scheme] e também possui certificação pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que avalia a segurança do larvicida no Brasil”, refere o Ministério da Saúde brasileiro no site.
O pyriproxifen deve ser colocado na água que serve de criadouro aos mosquitos, porque atua diretamente sobre as larvas, impedindo-as de se transformarem em adultos. O inseticida atua como se de uma hormona juvenil se tratasse impedindo, por exemplo, a formação das asas ou a maturação dos órgãos reprodutores.
O Programa Internacional de Segurança Química “considerou o produto seguro para uso no controlo do vetor Aedes aegypti, inclusive em água de consumo humano”, acrescentando que as avaliações feitas mostram que “o produto não tem ações carcinogénicas, teratogénicas ou genotóxicas”.
“Um adulto teria de ingerir uma colher de chá de pesticida para chegar aos níveis de toxicidade encontrados nos animais”, diz Ian Musgrave. Ou beber mil litros de água por dia dos reservatórios que são tratados com o pesticida.
Andrew Batholomaeus, consultor de toxicologia da Universidade de Camberra (Austrália), diz que, segundo os dados científicos em ratazanas e coelhos, doses diárias de até 100 miligramas de pyriproxyfen por quilograma de peso do animal não mostraram efeitos na reprodução ou desenvolvimento. “Este consumo equivaleria, numa mulher, a seis gramas de consumo por dia.”
A OMS não recomenda mais do que seis miligramas por dia nos humanos, continua o investigador, mas a quantidade que se coloca na água não deve ultrapassar 10 microgramas por litro, o que dá uma dose diária de 20 microgramas por pessoa. “Portanto, a ingestão de pyriproxifen em água tratada no Brasil é 300 vezes inferior ao limite de segurança estabelecido pela OMS.”
O efeito nos insetos não se compara ao dos humanos
George Dimech, diretor da secção de Controlo de Doenças e Agravos da Secretaria de Saúde de Pernambuco (Brasil), confirmou à BBC Brasil que nenhum estudo científico, até ao momento, mostrou qualquer toxicidade em humanos. “Há lugares onde se usa o pyriproxifen e não há casos de microcefalia. E também há lugares onde não se usa esse larvicida, mas há muitos casos, como o Recife”, explica. “Essa falta de correlação espacial enfraquece a ideia de que o larvicida causaria o problema.”
O efeito do pyriproxyfen está bem estudado na reprodução animal, assegura Ian Musgrave. “Numa diversidade de animais, mesmo quantidades enormes de pyriproxyfen não causam os efeitos vistos durante o surto de zika.” Além disso, segundo o professor, o corpo humano não absorve facilmente o composto e este desaparece rapidamente do ambiente.
O pyriproxyfen inibe as larvas de insetos, mas não existe qualquer prova de que esteja associado a defeitos em embriões humanos, reforça Ary Hoffmann, investigador na Universidade de Melbourne (Austrália), que trabalha novas opções para o controlo de mosquitos. “O desenvolvimento dos insetos é muito diferente do desenvolvimento humano e envolve hormonas, processos de desenvolvimentos e genes diferentes, portanto não se pode assumir que os químicos que afetam o desenvolvimento dos insetos, também influenciem o desenvolvimento de mamíferos.”
Ary Hoffmann concorda com a Abrasco dizendo que este controlo com pesticidas é temporário e que o melhor é reduzir os criadouros. Adicionalmente, podem ser usadas outras abordagens como os mosquitos manipulados geneticamente ou mosquitos infectados com a bactéria Wolbachia (como já explicámos aqui).
No meio de tudo isto, também é verdade que continua sem se provar se este surto de microcefalia está relacionado com o surto de zika. As evidências mais fortes apontam, contudo, para uma maior probabilidade de os casos de microcefalia advirem da infecção com o vírus zika do que de qualquer outra causa.