Quando “Chef’s Table” apareceu, em abril do ano passado, houve mesmo quem dissesse: Frank Underwood, tem cuidado, finalmente tens concorrência. A série documental transformou-se rapidamente num dos maiores sucessos da Netflix. Em seis episódios, viajávamos pela cozinha e pelas histórias de vida de alguns dos mais arrojados chefs do mundo, pelos restaurantes, receitas e técnicas mas também pelas memórias.

Há poucas semanas chegou a segunda temporada, de novo com meia dúzia de génios criativos que vale a pena conhecer. Mais: “Chef’s Table” trouxe uma nova forma de transformar comida em televisão, ao juntar as duas com classe, bom gosto e qualidade técnica como nunca tínhamos visto. David Gelb é o criador da série e é também dele a realização de alguns episódios. Falámos ao telefone com o americano, que confessa: sabe cozinhar mas este é outro campeonato.

Porque é decidiu criar “Chef’s Table”?
Quis fazer o “Chef’s Table” pelas razões mais simples, que são também as melhores. Adoro comida. Este é um primeiro bom motivo. Gosto de viajar, o que também ajuda, e acho que os chefs são óptimas personagens, até agora não tínhamos a hipótese de o perceber na televisão. Os chefs eram outra coisa.

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Que coisa?
Eram aqueles tipos meio esquisitos que davam instruções aos espetadores, que diziam “mexa assim”, “ponha os ovos desta maneira, não da outra”, esse tipo de coisas. E a isto, quem fazia os programas juntava sempre uma forma de realização que mais parecia a de um reality show, tudo muito pouco cinematográfico. Cheguei à conclusão que talvez conseguisse dar a volta a isso e aplicar as técnicas de storytelling neste tipo de produções. Fazer um retrato de um chef como artista e como pessoa, alguém que está numa viagem, num caminho, numa luta para mostrar a sua visão e o seu trabalho. Foi isso que fiz primeiro com “Jiro – Dreams of Sushi”, foi isso que fiz depois com o “Chef’s Table”, que é uma espécie de continuação.

[o trailer de “Jiro – Dreams of Sushi”]

O que descobri foi que qualquer chef que esteja a fazer comida incrível, que esteja a criar algo que nunca foi visto, tem uma grande história para contar. Todos eles. É como qualquer grande artista, não falha.

Mas nada do que vemos é sorte, certo? Não apontou ao acaso, houve uma seleção…
Claro. Escolhemos chefs que façam comida como mais ninguém faz, que estão na vanguarda, que marcam a diferença de uma maneira muito especial. Talvez esse seja o critério principal. Naturalmente que também fazemos pesquisa para ter a certeza que do ponto de vista pessoal, da vida de cada um deles, há uma história interessante para contar. E também para nos assegurarmos que eles vão estar disponíveis para partilhar essa história connosco. Se não tivermos a vida deles então não temos filme, é simples. Este programa não serve para ensinar ninguém a cozinhar, essa nunca foi a nossa ideia e nunca seria possível com estas pessoas. É uma série biográfica, de vidas fantásticas. Nunca vamos encontrar outras histórias como estas.

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David Gelb

Há uma ideia mais ou menos generalizada sobre os chefs, que são pessoas que não abrem muito o jogo, que não revelam muitos detalhes, sobretudo sobre o trabalho que fazem. Como é que eles reagiram a este desafio?
Nesse campeonato tínhamos uma vantagem: já havia trabalho para mostrar. “Jiro – Dreams of Sushi” serviu de cartão de apresentação. Com esse primeiro filme conseguimos conquistar a confiança das pessoas que queríamos filmar. E eles perceberam o essencial: não sabemos fazer as coisas fantásticas que eles fazem na cozinha mas gostamos de comida tanto quanto eles. Alguns são mais reservados que outros mas isso é normal. O desafio está em juntar todas essas diferenças e transformá-las num produto televisivo coeso.

Há um aspeto importante para o sucesso de “Chef’s Table”: o público alvo da série é vasto e em contínuo crescimento. Porque é que há tantas pessoas interessadas em comida na televisão e na internet?
Esse interesse não é de agora, sempre existiu porque tem a ver com duas coisas: o instinto da alimentação, naturalmente, mas também o lado social da comida. A junção de ambas as coisas sempre esteve cá. Já era assim com os programas da Julia Child, a grande diferença é que não havia internet, mas o desejo era o mesmo.

[excerto do programa clássico de Julia Child]

Com a internet e os blogs espalhados por todo o mundo, o que aconteceu é que pudemos saber o que se faz em qualquer parte, em qualquer cozinha, deixámos de estar limitados ao que se passava mais perto de nós ou no que a televisão nos dava. Com o “Chef’s Table” chegámos num cruzamento de ambas coisas. Fazemos televisão mas é uma televisão que chega a todo o lado, que não está dependente das regras clássicas. E também chegámos com novas possibilidades técnicas. Temos as mais recentes tecnologias, para filmar os chefs com uma qualidade notável. E com um custo razoável. É tudo digital e isso faz com que tudo seja mais acessível. Ou seja, combinamos sorte com o saber usar essa sorte. Ou como se costuma dizer, no sítio certo à hora certa.

Tem episódios favoritos?
Não, não diria… Tenho naturalmente uma proximidade maior com os episódios que realizei. E é engraçado ver que existe uma espécie de competição saudável entre os diferentes realizadores que fazem esta série. Na verdade, acho que são todos melhores que eu. Lembro-me por exemplo da experiência incrível que foi fazer o filme do Massimo Bottura, da Osteria Francescana, ele é um tipo muito especial, tal como o restaurante. Todos os aspetos se cruzaram de uma forma única e agora é mesmo o melhor restaurante do mundo.

[excerto do episódio dedicado a Massimo Bottura, da primeira temporada]

Mas depois há episódios como o de Francis Mallmann, na Argentina. O que ele faz é inacreditável. E o filme, realizado por Clay Jeter, é um cruzamento perfeito entre arte moderna e comida

[do episódio com Francis Mallmann]

Outro elemento importante em todos os episódios é a música e a forma como se relaciona com as imagens.
Foi uma preocupação muito grande que tivemos. Como acompanhar imagens como as que fizemos, graciosas mas cheias de força, elegantes mas também carregadas de ingredientes, de estímulos? A música clássica, de diferentes períodos, foi a solução. Porque não há outro tipo de linguagem criativa que junte tantas dimensões diferentes numa única plataforma tão perfeita e equilibrada.

Já agora, o David sabe cozinhar?
Sim. A minha mãe é uma cozinheira de receitas, ela faz os pratos em casa e transforma-os em receitas para os outros. Já tentei copiar algumas receitas de alguns chefes mas a coisa nunca correu bem, acabei sempre por conseguir apenas versões meio estranhas daqueles pratos fantásticos. Enfim, já não foi mau.