Índia, Paquistão, Bangladesh, China, Ucrânia, Brasil, Cabo Verde, Guiné. Na colina de Santana cruza-se tudo isto mas o código postal é sempre português. A grande comunidade imigrante que ali vive e faz negócio mantém a sua raiz multiétnica, fazendo do bairro um caso raro de encontro cultural. “Não há bairros de imigrantes em Lisboa. Eles fazem parte dela. É uma cidade aberta e intercultural”, diz Miguel Abreu, um dos responsáveis do Festival Todos, começa hoje e decorre até ao dia 11.

“A ideira original era a de fazer um evento multicultural que mostrasse a verdadeira Lisboa”, explica Miguel, da Academia de Produtores Culturais. Foi para casa pensar no projeto e chamou a sua equipa, Madalena Victorino e Giacomo Scalisi. “Queríamos criar um território urbano onde juntamos a cultural ao social. É impossível não trabalhar o lado multicultural sem fazer um trabalho social, com as gerações que habitam neste espaço”, descreve Miguel Abreu.

Uma das sete colinas

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A descrição apareceu pela primeira vez no Livro das Grandezas de Lisboa, de Frei Nicolau de Oliveira. A colina de Santana é quarta mencionada na obra. A primeira é São Vicente, a segunda Santo André, a terceira a colina do Castelo, a quinta São Roque, a sexta Chagas e a sétima a colina de Santa Catarina do Monte Sinai. Mas há quem diga que o autor se esqueceu de uma oitava, a Colina da Graça, a mais alta da cidade e encoberta pelo Castelo de São Jorge.

Intendente, Martim Moniz e Mouraria foram os bairros que lhe vieram de imediato à cabeça. “Por razões históricas, é onde há mais imigrantes”, acrescenta. Mas não se queriam cingir a um espaço. “O festival tinha de ser montado e levado a vários bairros”, explica a organização. Assim foi. O evento começou a sua Caminhada de Culturas em 2009, na Mouraria, onde se manteve durante três edições. Com o sucesso do projeto, Miguel, Madalena e Giacomo decidiram alargar o festival. Além de dar a oportunidade ao público de cortar o cabelo num cabeleireiro chinês, ou africano, vestir um sari ou descansar na rua da Palma, queriam mostrar os edifícios emblemáticos do coração da cidade. Queriam tornar o festival nómada. E levá-lo mais longe, onde houvesse música, dança, teatro, gastronomia e arte urbana.

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Subiram até à Colina de Santana e ao Campo dos Mártires da Pátria. “Fizemos escavações das histórias dos bairros profundos para recolher informação e criar capital social para montar o festival”, explica Miguel Abreu. Desafiou famílias e instituições, entrou em tascas, jardins e casas particulares e juntou artistas, sociólogos, arqueólogos e arquitetos num imenso espaço.

Estúdio de gravação analógica

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No número da 68b da Rua da Bempostinha, junto ao Campo Santana, grava-se como antigamente. No Scratchbuilt Studio, os microfones dos anos 40, que foram usados em gravações de Carlos Paredes e de Amália, são usados agora para outras experiências musicais. Das eletrónicas às acústicas, entre mesas de mistura modernas e os microfones Neumann há cada vez mais músicos a querer captar o som nos equipamentos dos anos 40 e 50.

Por isso, a oitava edição do festival, conta com uma programação diversificada em espaços como o hospital Miguel Bombarda, o jardim do Torel ou o Instituto Goethe. “Falámos com os proprietários de espaços da cidade para acolher espetáculos, exposições ou concertos. Tudo que eram atividades improváveis na ideia deles”, conta Miguel Abreu. Muitos destes edifícios estão fechados, vazios ou abandonados. Outros serão novidades. Por exemplo, no Campo de Santana vai “abrir um espaço que funciona como uma bolsa programação cultural com workshops e iniciativas artísticas”. “Chama-se Logradouro”, diz o responsável.

O reencontro com comida de todo mundo

Além de exposições, há também espaço para mostrar as iguarias do mundo. “Há pessoas que participam desde 2009 e isto é como rever amigos, ver como os filhos cresceram de um ano para o outro”, relata Miguel ao Observador. Claro que tudo isto se faz sempre melhor à mesa: temakis tradicionais, chamuças, os kebabs e os falafels ou carapau crocante de escabeche. É como embarcar numa viagem da Europa, passando por África e acabando no Oriente.” A nossa missão é levar as pessoas a conhecerem-se mutuamente. E, claro, criar capital de confiança e reconhecimento, ao juntar pessoas com gostos tão diferentes”, reforça a equipa do Festival TODOS.

O primeiro hospital psiquiátrico

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No passado, o Miguel Bombarda albergou o Convento da Congregação da Missão dos Padres de S. Vicente de Paulo, instalado na quinta de Rilhafoles, que desde a sua fundação, em 1717, acolhia os internamentos compulsivos de jovens condenados pelo Santo Ofício por crimes contra a moral e os bons costumes. O hospital foi fundado em 1848 e passou a ser utilizado para acolher “alienados”, o termo usado para designar os doentes mentais. O espaço tem um dos seis únicos panópticos sem teto que se conhecem no mundo.

Neste edição, Miguel quer surpreender o quotidiano das mais diferentes formas. Este é o tema da edição de 2016. Além de reabrir antigos palácios e quartéis, espera trazer mais pessoas, de outros bairros e nacionalidades. “Há emigrantes na zona J que não vem ao campo de Santana. Queremos trazê-los e que se sintam espectadores em casa”, explica o organizador.

Com ajuda de associações de Lisboa, esperam a promover uma aproximação entre moradores e o público, dando-lhes a conhecer distintas marcas culturais quantas as nacionalidades que existem na cidade. “Porque um angolano não vai ver um espetáculo de um chinês?”, questiona Miguel que acredita que é necessário desmitificar este medo de “sair do bairro para outros, serem espectadores, sem pagar”. “Vamos buscar pessoas a vários pontos da cidade. Queremos estimulá-los a participar. Este é o nosso maior desafio”, comenta.

Miguel Bombarda recebe a “poesia da loucura”

O festival conseguiu reabrir os portões do Miguel Bombarda e trazer a poesia aos corredores do primeiro hospital psiquiátrico no país. “Queríamos estimular o pensamento da loucura nas diferentes culturas do mundo”, explica. Sob o nome “Mas está tudo louco?”, o Dr.Tristeza/Bruta apresenta um trabalho literário e musical de Ana Deus a partir da obra poética de Ângelo de Lima, junto com Nuno Moura e Joana Bagulho. Com este trabalho, o Festival TODOS quer desmistificar o conceito de doenças mentais. Este é apenas um dos muitos temas que compõe a programação entre os dias 8 e 11 de setembro.

Colina do Conhecimento

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Na Colina de Santana há muitos edifícios degradados e abandonados, além de vários hospitais com fim à vista, assim que for construído o Centro Hospitalar Oriental de Lisboa, em Chelas. Há um projeto na Câmara de Lisboa que pretende ocupar alguns dos espaços libertos com equipamentos municipais ligados ao conhecimento, à cultura, à academia de Lisboa e às atividades criativas.

A colina da Santana volta a acolher a mesma vontade que passou por outros locais de da cidade: Miguel e a sua equipa querem mostrar as transformações de territórios no Intendente, na Mouraria, Martim Moniz, Poço dos Negros e Rua de São Bento. “Com este projeto descobri que os portugueses são simultaneamente racistas e não racistas”, afirma o responsável que há muita gente que desconhece os hábitos de outras culturas e tem medo. “Há logo um juízo prévio das pessoas”, acrescenta.

Miguel recorda que numa das primeiras exposições que realizou no âmbito do Festival uma das senhoras, junto à rua da Palma, dizia que o bairro era muito bonito mas “havia estrangeiros a mais”. No ano seguinte convidou-a para ser a cicerone do bairro. “Ela estudou, aprendeu o que era a exposição e já dizia que o bairro era grande, tinha muita gente e historicamente era há muito um destino de imigração. Em menos de um ano, era a maior defensora dos imigrantes”, relembra Miguel. “É isto que o Festival TODOS pretende. Tornar a Lisboa uma cidade aberta.”

Veja aqui a programação completa dos quatro dias de festival TODOS.