Quando Martin Scorsese visitou há alguns anos a famosa Escola de Cinema de Lodz, na Polónia, fê-lo na companhia de um dos seus mais ilustres alunos, o realizador Andrzej Wajda, que morreu ontem em Varsóvia, aos 90 anos. Na altura, Wajda referiu a Scorsese a importância da “liberdade irreverente” da criação cinematográfica. O autor de “Morrer com um Homem”, “Cinzas e Diamantes”, “O Homem de Mármore” ou “Katyn” sabia do que falava. Ao contrário de outros compatriotas, colegas e antigos alunos daquela instituição, como Roman Polanksi ou Jerzy Skolimowski, que escolheram ir fazer cinema para o Ocidente, e apesar de a espaços ter saído do seu país para filmar na Europa livre, Wajda permaneceu na Polónia durante a maior parte da sua vida, exercendo essa “liberdade irreverente” sob os constrangimentos da censura comunista, recorrendo muitas vezes à alegoria e ao simbolismo para a contornar e iludir.

[“Morrer como um Homem”]

https://youtu.be/rvuCkdrtxso

[“O Homem de Mármore”]

Assim, um filme como “Terra Prometida” (1975), aparentando ser uma crítica da desumanidade do capitalismo industrial na Polónia da viragem para o século XX, é na verdade um ataque à repressão comunista na Polónia e na União Soviética nos anos 60 e 70. Wajda combateu na resistência polaca durante a II Guerra Mundial, e podemos “ler” e acompanhar na sua filmografia a história da Polónia desde essa altura até à queda do comunismo, e aos anos da democracia subsequentes, quando o realizador teve as mão definitivamente livres para rodar filmes como “Katyn” (2007), sobre o massacre de milhares de oficiais polacos pelas tropas soviéticas na floresta do mesmo nome, em 1940, um deles o próprio pai de Wajda; ou “Walesa” (2013), uma biografia do histórico líder do Solidariedade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[“Katyn”]

[“Walesa”]

Os seus filmes são espelhos das principais convulsões que abalaram o país nas últimas sete décadas, desde a chamada “Trilogia da Guerra” (ou “Anti-Guerra”, segundo alguns), que inclui “Uma Geração” (1955), “Morrer como um Homem” (1957) e “Cinzas e Diamantes” (1958), rodados em expressivo preto e branco, sobre a geração que viveu a II Guerra Mundial e os anos imediatos da implantação do comunismo e dos ajustes de contas entre resistentes pró e anti-soviéticos, que a marcaram funda e dramaticamente; até aos filmes de denúncia e resistência ao poder comunista, e apoio ao Solidariedade de Lech Walesa, como “O Homem de Mármore” (1977) e “O Homem de Ferro” (1981), este vencedor da Palma de Ouro de Cannes. Ou ainda “Danton” (1983), rodado em França, com Gérard Depardieu, Patrice Chéreau e Wojciech Pszoniak. Neste, recriando, o tempo do Terror na Revolução Francesa, Wajda manda uma mensagem para Leste sobre as revoluções que acabam por se devorar a si mesmas, e a transitoriedade das tiranias.

[“Cinzas e Diamantes”]

https://youtu.be/tryPWICfQDc

[“Danton”]

Mas há ainda um outro Wajda, muitas vezes obscurecido pelo dos filmes históricos, políticos ou que refletem sobre a unidade nacional polaca (como “Pan Tadeusz”, de 1999, baseado no poema épico de Adam Mickiewicz) e que é preciso pena recordar. É o Wajda, por exemplo, do autobiográfico e meta-cinematográfico “Tudo à Venda” (1969), ecoando Fellini e Antonioni, e dedicado ao actor Zbigniew Cybulski, conhecido como “o James Dean polaco”, morto por um comboio aos 39 anos e protagonista de “Cinzas e Diamantes”; do drama romântico “Mulheres” (1979), passado nos anos 20, com Daniel Olbrychski, um dos seus intérpretes de eleição; de “O Chefe de Orquestra”, rodado parcialmente nos EUA, com Sir John Gielgud, Krystyna Janda, outra das actrizes favoritas de Wajda, e Andrzej Seweryn, um dos mais pungentes filmes já feitos sobre a velhice; “Os Possessos” (1988), adaptação de Dostoievski com um elenco que inclui Isabelle Huppert, Jutta Lampe, Omar Sharif e Bernard Blier; ou “Zemsta” (2002), uma popular farsa histórica polaca onde dirigiu Roman Polanski.

[“Tudo à Venda”]

[“Os Possessos”]

Coberto de honras no seu país e distinguido com vários prémios no estrangeiro, incluindo um Óscar de Carreira em 2000, Andrzej Wajda fundou uma escola de cinema na Polónia, juntamente com o seu colega Wojciech Marczewski e transformou-se no “elder statement” do cinema polaco, sem nunca deixar de estar activo no cinema, na televisão e no teatro, outro dos seus interesses. Poucas semanas antes de morrer, o Festival de Toronto fez a antestreia mundial daquele que seria o seu último filme, “Powidoki”, uma biografia do artista de vanguarda Wladyslaw Strzeminski, que morreu tuberculoso em 1952, depois de ter sido votado ao ostracismo pela burocracia cultural comunista. Até ao fim, Andrzej Wajda foi o homem de ferro do cinema polaco.

[“Powidoki”]