O sorriso ternurento, os cabelos caídos sobre o ombro direito obedecendo-lhe ao jeito da cabeça, olhos fechados num agradecimento tímido e a mão deitada no peito. Desde os tempos em que Ana Moura nos abriu o coração com o álbum “Guarda-me a Vida na Mão”, confessando-se pela primeira vez ser do fado – “sou fadista” -, é assim que agradece as palmas que lhe chegam do público. São palmas serenas, mas com vida. Orgulhosas, mas despretensiosas. São palmas ao ritmo de Ana Moura.

Já a sabíamos com ginga nas ancas, timbre majestoso, doçura nas palavras. Agora sabemo-la assim mesmo quando desce do palco, deixando para trás as luzes e os vestidos de lantejoulas. Esta terça-feira, o salão do Teatro da Trindade abriu as portas para receber a estreia oficial do documentário “Moura, o outro lado”, um projeto de metamorfoses que juntou o Observador a uma das equipas de artistas mais conceituadas do país.

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Ana Moura, entre José Manuel Fernandes, à direita, Clara Henriques e António Rocha Lopes, à esquerda

Há algo de diferente em Ana Moura e na equipa de músicos que a acompanha: com os corações ao alto cantam com os pés assentes na terra. Porque é daí que lhe vem a voz, opina Pedro Abrunhosa: “A voz da Ana é a voz da Terra”. Ainda lhe sentimos nas canções a melancolia própria de um estilo com demasiados séculos para não se impor. O fado é um pouco desta herança, como o anel de rubi que passou de avó em avó até chegar à atualidade. Mas é aqui, nos tempos de agora, que a música composta por Ana Moura se fertiliza: é música para os ouvidos do século XXI, com genética mulata e universal vinda também do pop, do rock, do soul, do semba. É que o fado pode ser triste, mas também pode ser uma festa.

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Ana Moura fala com Luís Filipe Costa, diretor de marketing do Santander

E foi uma festa o que se sentiu em pleno Chiado, na rua Nova da Trindade. As musas esculpidas na fachada do teatro receberam 200 convidados para descobrir quem é Ana Cláudia Pereira Moura, a mulher de 37 anos que dá voz à alma portuguesa através de sucessos como “Os Búzios”, “Desfado”, “Leva-me aos Fados”, “Dia de Folga” e “Tens Os Olhos de Deus”. São estórias – as nossas, de um povo crente, emotivo, laborioso. É por isto que a Universal, com quem Ana Moura começou a trabalhar quando Tozé Brito foi ao “Senhor Vinho” ouvir para crer no que Miguel Esteves Cardoso escrevia sobre ela, diz que esta é a artista que mantém os motores do fado acordados além fronteiras.

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A fadista agradece aos muitos amigos e admiradores presentes na festa de apresentação do documentário “Moura, o outro lado”

As imagens falam por si. Ana Moura é a mesma que põe os austeros austríacos a abandonarem as cadeiras para baterem palmas e dançarem. Não entendem a letra, mas “não é isso que é a música”? Uma transmissão qualquer de energia, um olhar pintado com sons que tudo permite compreender. A admiração estrangeira por Ana Moura é antiga: em 2007, Mick Jagger chamou-a ao palco para partilhar o tema “No Expectations” com a fadista portuguesa. Mais tarde, Prince confessou-se um fã incondicional do timbre de Ana Moura e tornou-se um pilar para o crescimento da artista.

Foi por essa altura que os portugueses se renderam à artista. A caminhada de Ana Moura pela música já ia longa e começava no sangue: da mãe, angolana, Ana foi buscar a paixão pelo fado – “o xaile de minha mãe, que me aqueceu com carinho, mais tarde serviu também para agasalhar meu filhinho”, cantava-lhe ela em criança com voz aguda – e do pai, de Amarante, foi buscar o gosto pelo rock e pelo folclore. Os pais, que desta vez se deixaram filmar pelas câmaras, dizem que aos 14 anos tinham percebido que as artes eram o caminho de Ana, por isso orientaram-na e “deixámo-la crescer”, explicam. Lembram-se daquela vez que foram a uma casa de fado malandro e ela se aventurou: “Já nem a queriam deixar ir embora”, recorda o pai.

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Os pais de Ana Moura fizeram questão de estar presentes

Foi precisamente isso que António Parreira fez quando a ouviu pela primeira vez num bar em Carcavelos, para onde a família Moura se mudou vindos de Coruche, terra natal da cantora. Dali levou-a para os ensinamentos de Maria da Fé, cuja casa de fados era uma autêntica montra para os fadistas portugueses. Foi de lá também que partiu para voos mais altos com a Universal, destas vezes nas asas de Tozé Brito e já com muitas lições na algibeira dadas por Jorge Fernando, autor de muitas das suas letras.

Agora já nem o céu pode ser limite. Ana Moura vai continuar em digressão, com a reedição do álbum que lançou a 25 de novembro do ano passado, “Moura”. Nos momentos de sossego, gosta de usufruir do silêncio de casa, da normalidade que lhe toca na pele quando está entre amigos. E talvez tenha sido por isso que este documentário, pensado inicialmente para ser um espelho do que se passa atrás dos concertos, acabou por ser uma prosa sensata, despida, crua e em improviso de quem é a mulher por detrás da voz que reconhecemos no próprio espírito português. Em breve, poderá entrar no mundo de Ana Moura e de quem anda ao seu lado aqui mesmo no Observador.