Era o dia da despedida. Ao fim de várias semanas intensas na aldeia de Parba, Luís Godinho fazia a última viagem no autocarro que o levava todos os dias “de manhãzinha” para o centro hospitalar que a missão da AMI tentava recuperar nas planícies arenosas do Senegal. Não estava ali como missionário: tinha combinado com a instituição que entraria naquela aventura solidária de câmara fotográfica pendurada ao pescoço O plano era ajudar quem mais precisa a partir da arte. Criou “laços fortes com os putos” da tribo vizinha: eles brincavam em seu redor e ajudavam a pintar as paredes do hospital. No dia em que Luís Godinho tinha que ir embora, os putos penduraram-se na janela do autocarro. Uma menina olhou aflita para a lente do fotógrafo português, açoriano natural da Ilha Terceira, pedindo-lhe que não partisse. Só quando chegou a casa, de regresso aos Açores, é que Luís olhou a menina nos olhos. Os mesmos olhos que lhe valeram esta terça-feira o título de melhor fotógrafo português da Sony World Photography Awards.

Aos 34 anos e com um curso de Engenharia do Ambiente no currículo, Luís Godinho confessa que não estava preparado para a projeção que a fotografia ganhou agora, apenas um dia depois da oficialização dos vencedores e um mês após a Sony o ter informado, sob sigilo, do prémio. Diz que este reconhecimento chega normalmente mais tarde. Ao telefone, baixa o tom de voz para nos dizer quantos anos já tem. Depois ri-se: “É que eu não me vejo com 34 anos. Sinto-me muito mais novo. Só me lembro da idade que tenho quando me começam a doer os joelhos por ter jogado à bola muitos anos“. Deve ser esta a genética de um fotógrafo, explica-nos: “A fotografia exige um percurso comprido. É uma viagem longínqua. E eu estou sempre no início dessa caminhada. Todos os dias estou no início porque aprendo mais com os meus colegas, mais com o mundo. Para mim é sempre o início”.

As dores de joelhos, garante, não serão um travão. Luís Godinho quer voltar ao Senegal, encontrar aquela menina da foto e perguntar-lhe o nome. Lembra-se de a ver pela rua com as outras crianças e de a reconhecer noutras fotografias tiradas em Parba, mas nunca lhe perguntou o nome porque “não sabia da emoção e da importância que esta foto ia ter”. Queria regressar ao Senegal ainda este mês para lhe entregar aquela fotografia impressa, mas a viagem não é barata. Talvez para o ano. Por enquanto tem outra ideia em mente: preparar um almoço ou um jantar em parceria com a AMI e leiloar as imagens que captou em Pagba. Com o dinheiro quer comprar comida, medicamentos, roupas e material escolar e entregar tudo à aldeia onde passou semanas a fio com a câmara fotográfica no lugar dos olhos.

É assim que vai ganhando a vida. No verão fica pelos Açores a fotografar casamentos “como se fossem uma foto-reportagem” e a concentrar-se em trabalhos de publicidade. O dinheiro que amealha com esses trabalhos comerciais é investido durante o resto do ano em viagens fotográficas e documentários fotojornalísticos. Tem de ser assim porque “o fotojornalismo em Portugal está um bocado condenado”, mas Luís Godinho não se queixa: “Tenho tido muito trabalho. Tenho tido a sorte de não precisar de bater à porta de ninguém, as pessoas é que veem ter comigo. Quem é apaixonado por esta arte, e vê essa paixão a dar frutos, não se pode queixar“.

Essa paixão levou-o a voos mais altos. Um homem sensível e emocional confesso, Luís Godinho prepara-se agora para montar uma organização não-governamental que ajude as crianças mais carenciadas em África através da arte que representa. Primeiro vai vender fotografias suas, preparar leilões e pedir doações para ganhar dinheiro suficiente para dar os primeiros passos. Depois vai pedir patrocínios às marcas de material fotográfico e voar para África para colocar câmaras nas mãos dessas crianças. “O meu objetivo é ver como é que estas crianças percecionam o mundo. Eu digo-lhes onde é que se carrega para tirar uma fotografia e depois vendo as imagens delas. O dinheiro que essas imagens renderem vai servir para transformar em bens, que depois vou levar para os sítios de onde elas são“, explica o fotógrafo ao Observador.

Porquê África? Porque é onde estão as pessoas que precisam de mais auxílio agora. A Índia, que já visitou três vezes, tem uma “cultura fascinante”, mas foi no continente africano que Luís Godinho encontrou “uma magia única”, nas suas viagens ao Senegal e à Guiné. “É um bocado injusto ter de escolher a minha viagem favorita. Encontro encanto em todos os recantos do mundo. Esteja onde estiver tenho de comer, cheirar, conhecer as pessoas e explorar as terras”, descreve ao Observador. É um fotógrafo de envolvimento, gosta de fotografar o quotidiano e as coisas que “são tão banais que nem ligamos”. Se há cenários onde percebe o distanciamento e a frieza que pedem a um artista fotográfico, há ocasiões onde “o trabalho só pode ser genuíno se for vivido em união com a realidade”. É por isso que nem sempre intitula as suas imagens. A fotografia com que ganhou o prémio nacional da Sony, por exemplo, chama-se “Janela”, mas não precisa de nome: “A cor negra daquela menina e a forma como, a preto e branco, contrastam com os seus olhos… Nada disto precisa de nome. Aqueles olhos falam por si”.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR