Eram os anos 90. A última década do segundo milénio. Previsões do apocalipse competiam com o sonho de um progresso infinito. A celebração de uma Europa finalmente unida depois da queda do muro de Berlim engasgou-se com a guerra do Golfo logo a abrir a década. As tecnologias de guerra mais avançadas entravam pelas nossas casas dentro em televisões de alta fidelidade, computadores, telemóveis, internet. O bem estar-económico alargava-se e as cidades cresciam alastrando-se por subúrbios sem fim. Os centros comerciais eram estação terminal de um século marcado por duas guerras mundiais, a Guerra Fria, a ida à Lua. Eram os anos 90 e tudo parecia possível.
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Gwen Stefani, um dos ícones de estilo dos anos 90, aqui a celebrar muitos dos símbolos da moda desta década: cabelo colorido, buns, rosto tatuado com pedras coloridas, umbigo à mostra.
O culto das marcas de luxo como a Versace, a Gucci ou a Calvin Klein, o reinado das top models, dos jeans Guess e das Levis 501, das roupas da Benetton com os seus polémicos anúncios publicitários, das roupas da Diesel ou da Gap convivia com sinais de um decadentismo sombrio de movimentos como o Grunge, na música, ou o Dogma 95, no cinema. O fim do milénio fascinava-se com os serial killers de Tarantino em Pulp Fiction e Cães Danados, com o romance American Psycho de Bret Easton Ellis, com a violência de Trainspotting ou Nacked, a melancolia mortal de As Virgens Suicidas. Uma geração inteira aprendia a amar de forma desalinhada, anti-conservadora e sem final feliz com Henry & June, Pretty Woman, Antes do Amanhecer, Bufalo 66, Lolita. José Saramago escrevia a distopia Ensaio sobre a Cegueira e a poesia como um inesquecível perfume de António Franco Alexandre saía no volume Poemas pela Assirio & Alvim de Hermínio Monteiro.
Smells like teen spirit
Os Nirvana davam o mote para a alma de uma década feita de paradoxos: “Come as you are”. E David Lynch marcava para sempre as nossas salas de estar domésticas com a suspeita de que o mal era omnipresente e poderia vir de qualquer lugar em Twin Peaks.
A televisão impunha a moda mainstream em séries como Beverly Hills 90210, Clueless, Buffy, Friends, Sexo e Cidade. Era a apoteose denim nas suas infinitas versões: jardineiras, mum jeans, pré-lavados com lixívia, adornados com bordados, rasgados, cinturas subidas, blusões largos, camisas, minissaias. Foram também os anos dos crop tops coordenados com um piercing no umbigo e o rosto enfeitado com tatuagens, purpurinas e pedras brilhantes que ninguém usou com tanto estilo como Gwen Stefani, a vocalista dos No Doubt. E das camisas amarradas na cintura, dos vestidos de alças fininhas e acetinados a lembrar lingerie conjugados com botas de combate Dr Martens ou Timberland celebrizados pela rainha do estilo girly-whore Courtney Love. Mas o espectro mais perturbador da moda vinha mesmo do heroin chic perversamente adorado nos corpos magérrimos de Kate Moss, Winona Rider, Chloe Sevigny.
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Kate Moss em 1992, com um look Anna Sui. A herança pastoril da cabeça adornada de flores competia com os adornos góticos num dos muitos paradoxos de que foi feita a moda desta década.
Um certo minimalismo nas formas respondia ao excesso barroco dos anos 80. Celebrava-se o gótico com o look negro total, as gargantilhas vitorianas, os vestidos largos, as saias compridas. A aparência oscilava entre a perfeição intemporal das meninas do Sexo e a Cidade e o repto de Kate Moss “I’m too cool to care”.
A cultura pop exaltava nas Spice Girls e Britney Spears e o seu universo de bonecas kitsch com os cabelos em escadeados, enrolados em dois coques ou apanhados no alto da cabeça com scrunchies coloridos.
Se o girl power se afirmava, o man power começava a acusar uma mudança na forma de expressão da masculinidade. Eis que, de repente, os homens podiam (e deviam) mostrar a sua fragilidade: as mortes de dois ícones transgressores como Kurt Cobain ou River Phoenix, o cinema a mostrar as figuras de homens enfraquecidos, mentalmente destruídos em filmes como A Festa de Thomas Vintenberg, Magnólia de Paul Thomas Anderson, Beleza Americana de Sam Mendes, os corpos magros e desajeitados de ícones da moda como Vincent Gallo passavam a mensagem de que os homens também tinham um mundo interior.
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Vincent Gallo e Christina Ricci no filme de culto “Bufalo 66” evocam toda a moda de rua dos anos 90.
Talvez por isso o look grunge tenha feito tanta carreira, com as suas camisas de padrões florais quase femininos a competirem com a rugosidade dos bombers e bikers de pele, os cardigans de malha esburacados, as carteiras triangulares com uma afirmativa corrente metálica, as incontornáveis camisas aos quadrados e as t-shirts de inspiração surfista de marcas como a Billabong, O’ Neill e Quiksilver.
A androginia sem culpa e popularizada na publicidade e na moda punha rapazes e raparigas a cheirar a CK One da Calvin Klein, a usarem as mesmas camisas largas de flanela e, no final da década, as mesmas cargo pants ou calças de combate. O mundo podia ser uma “Bitter Sweet Symphony”, como cantavam os Verve, mas hoje, que olhamos os anos 90 de longe, uns com nostalgia, outros com surpresa, tudo o que podemos dizer disse-o melhor António Franco Alexandre, em 1999:
quero dizer-te: não morras.
Nem me digas quem és, quem foste, como sabes
a língua que se fala sobre a terra.
Ao lume lanço
toda a vontade de viver, ser vivo,
a cautela do ar, ardendo em torno.
Passarei, terás passado em mim, só quero
dizer-te: não morras nunca, agora, nunca mais.”
Revendo a nossa fotogaleria percebemos como todas estas coisas têm vindo a reaparecer mais ou menos subrepticiamente, para em 2017 afirmarem ao que vêm: os anos 90 foram demasiado importantes para não os voltarmos a celebrar.