Quando somos atacados pela nostalgia de uma determinada época das nossas vidas em que fomos particularmente felizes, podemos ir ver as fotografias desse tempo. Mas o mais provável é que, sendo filhos da era da cultura de massas, voltemos a mergulhar no entretenimento popular que o marcou, relendo, revendo e voltando a ouvir os filmes, os livros, os filmes, as bandas desenhadas, a televisão, as revistas e os discos que fizeram a nossa alegria e que coleccionámos com afinco, e jogando os jogos de tabuleiro ou de vídeo que nos absorviam durante horas e horas. Quando Steven Spielberg é atacado pela mesma nostalgia, realiza um filme de 175 milhões de dólares propulsionado a efeitos digitais.

[Veja o “trailer” de “Ready Player One: Jogador Um”]

Em “Ready Player One: Jogador 1”, adaptado do livro de Ernest Cline, que também participou no argumento, Spielberg evoca e celebra a década de 80, que lhe é muito querida em termos pessoais e também durante a qual realizou alguns dos seus filmes mais significativos (“Os Salteadores da Arca Perdida”, “E.T. — O Extraterrestre”). E fá-lo recorrendo à rica cultura popular dessa época, que ele próprio contribuiu para moldar de forma maciça (e também perniciosa, segundo aqueles que lhe reprovam a infantilização simplista de alguns géneros cinematográficos e formas narrativas tradicionais, como o fantástico e a ficção científica, que também se estendeu à televisão).

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[Veja a entrevista com Steven Spielberg]

Só que sendo Spielberg uma das personagens da indústria cinematográfica americana mais atenta às novas manifestações tecnológicas dentro e fora do meio, e senhor de um sentido comercial consumado, “Ready Player One: Jogador 1” não se limita a ser uma fita que joga com a nossa afectuosa memória colectiva da cultura popular dos anos 80 em todas as suas manifestações. É, simultaneamente, um filme que pretende apelar aos membros da geração dos smartphones, dos iPads e dos jogos de vídeo com orçamentos e meios de produção de “blockbusters”, que passam horas na Internet, só vão ao cinema ver filmes de super-heróis e não sabem o que é ler. “Ready Player One: Jogador 1” tem dois rostos: um nostalgicamente virado para o passado, outro firmemente fixado no futuro. E quer capitalizar nas duas respectivas clientelas.

[Veja a entrevista com Tye Sheridan e Olivia Cooke]

A história situa-se em 2045, num futuro onde as divisões sócio-económicas se acentuaram fortemente. Para escapar às agruras do quotidiano, as pessoas evadem-se em massa para um universo virtual, o OASIS, criado por um génio excêntrico, James Halliday (Mark Rylance), uma espécie de Bill Gates da realidade artificial. No OASIS, cada qual tem o avatar que lhe apetece e pode viver as aventuras mais inimagináveis, como se estivesse metido num imenso e pluriforme jogo de vídeo. Halliday, que já morreu, legou a sua enorme fortuna e o controlo do OASIS a quem conseguir resolver o triplo enigma que ele lá deixou dentro, e toda a gente compete, sem sucesso, para ficar de posse das respectivas três chaves e resolvê-lo.

[Veja a entrevista com Mark Rylance]

Através do seu avatar, Parzifal, o jovem Wade Watts (Tye Sheridan) consegue descobrir a primeira chave. Acompanhado por quatro amigos, um deles uma activista anti-sistema, Samantha (Olivia Cooke), Wade lança-se numa corrida alucinante para resolver o mistério do OASIS, tendo ao mesmo tempo que combate a mega-corporação maligna de serviço à história, a IOI, a qual tem planos muito pouco lúdicos para usar aquele universo virtual em proveito da sua contabilidade. Rodado em 3D, “Ready Player One: Jogador 1” quer estar para o espectador como o OASIS está para as personagem do filme, e funciona também como uma versão “user friendly” e muito mais ligeira de “Matrix”.

[Veja a entrevista com o escritor Ernest Cline]

https://youtu.be/-Ddd8dEnlI4

A acção progride como se fosse um colossal jogo de vídeo disputado no OASIS e também no mundo “real”, entre as personagens e os seus avatares, e Spielberg bombardeia-nos em contínuo com referências da cultura popular dos anos 80 (e não só), várias delas da sua lavra. “Ready Player One: Jogador 1” é um filme onde um T-Rex persegue um DeLorean, onde King Kong destrói a moto do herói de “Akira”, onde uma personagem se veste como Buckaroo Banzai para ir dançar em gravidade zero numa discoteca ao som da música de um dos filmes “disco” de John Travolta, onde o Gigante de Ferro luta com o Mechagodzilla e é preciso jogar num velho Atari para resolver um enigma. E onde os heróis até entram por um filme de outro realizador dentro, naquele que é o primeiro caso de invasão cinematográfica por via digital da história da Sétima Arte.

[Veja imagens do filme]

Este divertido mas também repetitivo pandemónio ciber-pop prolonga-se por mais de duas horas, e é rematado por uma diligente “mensagem” pronta-a-usar e que já se adivinhava à distância, sobre os perigos de nos deixarmos absorver nos mundos do entretenimento virtual e de perdermos o pé da realidade e os outros de vista. (Soa a falso num filme em que as personagens arriscam a vida pelo direito a passarem horas perdidas numa realidade manufacturada por computador.) Numa entrevista recente, Steven Spielberg disse não acreditar que a realidade virtual possa vir a ser o cinema do futuro, já que não é adequada para “contar histórias”. Embora haja realizadores a fazer tentativas nesse sentido, como Ridley Scott e a “The Martian VR Experience” de meia hora, paralelamente ao seu filme “Perdido em Marte”.

[Veja imagens da rodagem]

Entretanto, e se apesar de gostarmos da dose ocasional – e cavalar, como é aqui o caso – de nostalgia de cultura popular de massas, preferimos ficção científica mais elaborada, que especula com seriedade e consistência sobre os efeitos mais inquietantes das novas tecnologias sobre as nossas vidas, à “sci-fi” imediatista e transparente para “gamers” e “geeks” de “Ready Player One: Jogador 1”, temos sempre a opção de a irmos procurar na melhor literatura do género, ou em séries de televisão adultas como “Black Mirror”.