Liberdade, movimento e generosidade são algumas das palavras que ocorrem a Sara Antónia Matos para falar de Júlio Pomar, o artista plástico que morreu na terça-feira em Lisboa, aos 92 anos, reconhecido como um dos criadores mais influentes da arte portuguesa contemporânea.

Sara Antónia Matos, de 40 anos, é doutorada em Escultura pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa e dirige o Atelier-Museu Júlio Pomar desde a fundação, em 2013. Ao Observador, recorda como conheceu o artista e lembra como ele ficava espantado ao ver pinturas que tinha assinado há mais de 50 anos.

Atelier-Museu Júlio Pomar fica na Rua do Vale, em Lisboa, frente ao atelier onde o artista trabalhou quase até aos últimos dias

Que memórias guarda do momento em que conheceu Júlio Pomar?
Conhecemo-nos em 2013, quando a Câmara de Lisboa abriu o Atelier-Museu. Conhecia a obra, mas não o pintor. Na altura, as obras dele ainda não estavam no espaço, não tínhamos acervo, e fizemos uma primeira visita, que foi muito bonita. Nessa ocasião, conheci a pessoa e a sua generosidade, ouvi-o falar das ideias que tinha para este museu, desenhado por Siza Vieira. O espaço estava vazio e começámos a imaginar as obras nas paredes. Foi um momento muito especial. Depois, claro, no trabalho que desenvolvemos nos últimos anos, tivemos um contacto semanal, às vezes diário. Houve sempre muita cumplicidade.

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Era no Atelier-Museu que Pomar trabalhava?
Algumas pessoas essa ideia, mas não, o atelier não era aqui. Foi essa a intenção original, mesmo antes de Siza Vieira fazer o projeto: que Júlio Pomar fizesse do museu um espaço de trabalho. Mas isso não chegou a acontecer. O pintor preferiu ficar no atelier que já tinha, porque não poderia trabalhar à frente do público. O palavra manteve-se no nome não só pela estrutura arquitetónica, que é quase a de uma casa, mas também porque, segundo o próprio Pomar, os ateliers são espaços de ensaio e de propostas e era essa a ideia que ele tinha para o museu. Não uma casa-museu, que mostrasse o passado, mas um lugar de novas propostas, de experimentação, de diálogo com outros artistas.

Diz-se que o pintor trabalhou praticamente até aos últimos dias. A criação constante foi uma das principais características de Pomar?
Penso que sim. O atelier propriamente dito fica na mesma rua do museu, mesmo em frente, era só atravessar a estrada. Ele visitava-nos muitas vezes. Trabalhava para respirar, era a maneira que tinha de encarar o mundo, de pensar e de viver. Trabalhava continuamente, se não a desenhar ou pintar, a pensar e a escrever, a imaginar projetos, ou até a trabalhar connosco. Relatava memórias, participava nas conferências do museu, estava sempre em trabalho, era incansável. Começava várias telas em simultâneo, que muitas vezes ia transformando com camadas sobre camadas.

É autêntica a imagem que temos de um homem muito sociável e de um pintor sempre disponível para dialogar com outros criadores?
Sem dúvida. Nunca foi uma pessoa isolada do mundo e afirmou-se muito em termos políticos. Pensava esta casa como local de conversa e de encontro com os seus pares e com o público. Nunca recusou participar. Não houve inauguração a que ele não tenha vindo, a não ser nos últimos tempos, porque estava impossibilitado. Recordo um momento marcante, com Pedro Cabrita Reis, em que Pomar, de manhã à noite, participou na montagem, sempre de pé, sempre dinâmico. Foi há cerca de um ano, com a exposição “Das Pequenas Coisas”, que mostrou esculturas e assemblages de Pomar e Cabrita Reis. Admiravam tanto o trabalho um do outro que decidiram não identificar as obras em exposição e com isso desafiaram o público a descobrir quais seriam as de um e as de outro.

Sara Antónia Matos dirige o Atelier-Museu Júlio Pomar desde a fundação, em 2013

Pomar foi várias vezes homenageado em vida. Qual terá sido a distinção mais importante que lhe foi feita?
Nunca foi esquecido, é importantíssimo dizer isso. O Atelier-Museu terá sido o maior reconhecimento em vida. Um museu que trabalha a própria obra, apoiado pela Câmara da cidade em que nasceu, é sintomático desse reconhecimento, que continuará daqui para a frente. Houve outros momentos, ao longo das décadas. Foi o primeiro artista português que em vida viu uma obra classificada como de Interesse Público, o que aconteceu com “Almoço do Trolha” [1946-50, hoje pertencente ao Centro de Arte Manuel de Brito]. É motivo de espanto e de alegria. O “Almoço do Trolha” foi exibida aqui no museu há cerca de um ano e meio. Muitas vezes, para as nossas exposições, pedimos obras emprestadas a outras instituições, porque não temos a obra completa de Júlio Pomar. Ele espantava-se quando uma obra chegava. Não via o “Almoço do Trolha” há 50 anos. Espantava-se e sorria, quase como se não tivesse sido ele a fazer a obra.

Raquel Henriques da Silva, diretora do Museu do Neorealismo e antiga diretora do Museu do Chiado, defendeu ontem que o Museu do Chiado deveria organizar imediatamente uma retrospetiva de Pomar. Concorda?

Congratulo-me e felicito todas as homenagens que possam ser feitas, mas só posso falar pelo Atelier-Museu. O desejo do mestre foi sempre, disse-mo várias vezes nesta fase final, que continuássemos com a programação normal e isso significava olhar para a frente. Penso que não queria aqui, no museu, exposições que olhem apenas para o passado — embora isso seja fundamental, porque só dessa maneira se consegue perspetivar. A ideia dele seria sempre, para o museu, um cruzamento com a obra de outros. Pomar olhava para a frente e nunca para o passado. É isso que aqui faremos. Para já, estamos a assinalar o Maio de 68 com séries de Júlio Pomar nunca antes reunidas e mostradas em Lisboa [exposição “O Que Pode a Arte?”, até 29 de setembro].

A influência que Pomar deixa na arte portuguesa é mais estética ou ética?
Ambas, porque a estética e a ética estão associadas. Os modos de fazer da estética contêm sempre uma ética na sua raiz, que é uma espécie de verdade do pintor e da sua expressão plástica. Pomar foi sempre fiel a isso. Alterou e contribuiu de forma determinante para a história da arte portuguesa e para a obra dos seus sucessores, foi-se renovando plasticamente ao longo de sete décadas de atividade, o que constitui um exemplo inigualável. Sem medo de não ser consensual, sem evitar qualquer discussão. Era conduta dele afirmar a liberdade de criação e de expressão. Acho que isso é uma marca indelével. Trouxe para o campo da arte assuntos estéticos, éticos e políticos como o erotismo e o prazer dos corpos, a crítica e a ironia. Deu o exemplo de como a arte pode ser desimpedida de qualquer tipo de constrangimentos.

Se tivesse de resumir a pessoa e a obra numa só frase, diria que morreu Júlio Pomar, um artista plástico que…
…que pugnou sempre pela liberdade, pelo movimento, pela dinâmica e pelo encontro com os outros, pela partilha, pelo diálogo e pela generosidade.