O mais próximo possível da realidade. É assim que nos sentimos no final das mais de cinco horas de “Hora Feliz”, o filme-maratona do japonês Ryusuke Hamaguchi (estreia-se dividido em partes). Trata-se de um “gendai-geki” (filme de temática realista e ambiente contemporâneo) que toma a forma clássica de um “woman’s picture” para contar a história de quatro amigas na casa dos 40, que vivem na cidade costeira de Kobe. O divórcio de uma delas, e a descoberta de factos da sua vida que as restantes desconheciam, vão causar fricções e fracturas no pequeno grupo. E levar as amigas a examinar as suas vidas conjugais e sentimentais, consultar os seus mostradores de felicidade, pesar os seus papéis na família e na sociedade, as relações com os que lhes são mais queridos, e as suas desilusões, interrogações e anseios. E vamos sendo mergulhados pouco a pouco no quotidiano de cada uma delas.

[Veja o “trailer” de “Hora Feliz”]

Formal, dramática e tematicamente, Hamaguchi invoca, em “Hora Feliz”, cineastas tão variados como Edward Yang, Rohmer, Cassavetes, e os seus compatriotas Ozu, Naruse e Mizoguchi. Mas o filme está muito longe de ser uma mera colecção bem camuflada de referências. “Hora Feliz” tem vida, tracção e identidade própria para lá delas. É um monumento de naturalismo, um trabalho de ourives sobre a verdade humana, social, emocional e psicológica das personagens, e uma radiografia detalhada e sensibilíssima das relações e dos hábitos sociais, culturais e familiares do Japão de hoje, que se estende ao mau-estar e às perplexidades sentidas nas nossas sociedades modernas . Sem esquecer a forma como os nipónicos funcionam uns com os outros e estão no mundo, o que não raras vezes escapa aos olhos ocidentais.

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[Veja uma entrevista com o realizador Ryusuke Hamaguchi]

Para entendermos melhor este filme, há que saber que, para os japoneses, há sentimentos e pontos de vista que, por uma questão de educação e de reserva, se guardam para nós e os que nos são mais chegados,  e que a livre expressão de todas as opiniões em público não é bem vista. A narrativa de “Hora Feliz” constrói-se com base numa sucessão de encontros, refeições, viagens e conversas, públicas ou privadas, quase sempre regidas pela deferência, pelo subentendido e pelo omisso na manifestação de sentimentos e opiniões.  O que faz realçar ainda mais o efeito dramático e o choque emocional das revelações e das surpresas que se vão dando, e a forma como afectam as quatro amigas —  Jun, que se está a separar e que juntou as quatro originalmente,  Fumi, casada com um editor, Akari, em jejum de relações amorosas, e Sakurako, mulher de um funcionário público e mãe – e os que as rodeiam.

[Veja uma sequência do filme]

Há, aliás, duas longas sequências colectivas em “Hora Feliz”, só possíveis num filme com esta duração e todo este espaço narrativo para respirar á vontade, que Ryusuke Hamaguchi utiliza, a primeira, logo após o início, passada num “workshop” com um artista, para “lançar” esta ideia do estar retraído ou pouco à-vontade com o outro em grupo e da importância de o conseguir superar; e a segunda, já para o final, na apresentação do livro de uma jovem escritora, para fazer uma síntese do que esteve em jogo entre as personagens principais, no plano emocional e na percepção dos outros e dos seus comportamentos e sentimentos. E o realizador nunca permite que isto se torne pretensioso ou obscuro. “Hora Feliz” é, do princípio ao fim, um filme de uma enorme limpidez de descrição e exposição, e sempre delicadamente subtil.    

[Veja o “trailer” original do filme]

A procura do máximo de autenticidade na minuciosíssima encenação das vidas destas quatro mulheres e do mundo à sua volta, levou Hamaguchi a trabalhar com pessoas sem experiência de representação em vez de actores profissionais, para que as personagens estivessem o mais chegadas possível ao real “normal” e quotidiano. Na origem da fita está um “workshop” de improvisação dado em Kobe pelo realizador, e as personagens principais foram escritas com base nas suas próprias intérpretes.  As quatro actrizes de “Hora Feliz” – Sachie Tanaka, Hazuki Kikuchi, Maiko Mihara e Rira Kawamura – são extraordinárias de presença, naturalidade, justeza e interacção, tendo ganho, em conjunto, o Prémio de Melhor Interpretação Feminina no Festival de Locarno de 2015 (o realizador teve o de Argumento).

Nem credulamente optimista, nem banalmente pessimista, “Hora Feliz” é notável de escrita, observação e empatia, elaboração emocional e psicológica, direcção de actores, fluência narrativa, eficácia e elegância cinematográfica (ver o “leitmotiv” dos comboios que passam ou em que as amigas viajam). Ryusuke Hamaguchi dispensa bordões melodramáticos, estereótipos de caracterização e  facilidades de enredo, dando-nos quatro eloquentes retratos femininos e revelando em profundidade as personalidades e idiossincrasias, e as vidas afectivas, familiares e sociais deste grupo de mulheres, sem piedades, demagogias ou simplismos do feminismo pronto-a-consumir. Filme sóbria e delicadamente esmagador, “Hora Feliz” é imperdível por quem quer que se interesse pelo Japão, pela cultura nipónica e pelo cinema japonês, e um dos grandes acontecimentos da exibição em Portugal este ano.