Ser solteira e estar grávida em Marrocos não é o mesmo do que em Portugal, França ou Dinamarca, como nos conta a antiga jornalista, e agora atriz, argumentista e realizadora marroquina Maryam Touzani em “Adam”, a sua primeira longa-metragem. Um filme que vem na linha direta dos seus trabalhos anteriores dedicados à condição da mulher naquele país, caso de um documentário sobre as prostitutas idosas e desamparadas de Casablanca, ou da curta “Aya va à la plage”, sobre uma menina que apesar de ter apenas 10 anos já trabalha como criada numa casa particular, de onde raras vezes a deixam sair.

Em “Adam”, que também escreveu, Touzani filma duas mulheres de gerações diferentes. A jovem Samia, que engravidou na sua aldeia e veio para Casablanca para fugir à desonra, e vagueia pela cidade sem eira nem beira, esperando ter o bebé, dá-lo para adoção e depois voltar a casa; e Abla, a severa viúva que a recolhe, e que trabalha todo o dia na sua pequena padaria com balcão para a medina e vive envolvida no seu desgosto, dedicada apenas à filha pequena, a espevitada Warda. Abla abdicou até de ouvir música na rádio e ignora a balbuciante corte que lhe tenta fazer o tímido filho do moleiro que lhe fornece a farinha.

[O trailer de “Adam”:]

Apesar de, a início, pôr reservas à presença de Samia, Abla acaba por a aceitar, bem como à oferta de trabalho da rapariga, dizendo às clientes e às vizinhas que ela é uma prima da província que veio ter o filho a Casablanca. E o ambiente na casa muda. Warda começa a encarar Samia como uma irmã mais velha que brinca com ela e sabe fazer deliciosos doces tradicionais; Abla tem uma companhia alegre e industriosa, e uma ajudante cujos talentos culinários fazem trepar as vendas da padaria; e Samia tem um teto, comida, trabalho e uma aproximação de família substituta.

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[Veja uma entrevista com a realizadora Maryam Touzani:]

E começam a desenvolver-se vasos comunicantes. Samia extrai Abla da carapaça de luto e resignação em que ela se tinha envolvido após a morte do marido, e põe-a a voltar a ouvir música, a maquilhar-se e a vestir-se sem ser de negro; Abla, por seu lado, desperta o instinto maternal de Samia quando esta, depois de ter o bebé (batizado Adam), se recusa a amamentá-lo, a tê-lo ao colo ou a fazer-lhe uma carícia que seja, para não se apegar a ele e o entregar para adoção, e assim evitar-lhe infelicidade de crescer como o filho de uma mulher desonrada e sem marido.

[Veja uma entrevista com a atriz Lubna Azabal:]

Apoiada no seu trio de atrizes, a experiente Lubna Azabal (Abla), a viçosa Nisrin Erradi (Samia) e a álacre Douae Belkhaouda (Warda), Touzani evita tanto o sentimentalismo, como o panfletarismo, deixando que a história e as personagens se contem a si mesmas e exponham o que há para expor, com parcimónia narrativa e delicadeza, doçura e compreensão. E instala uma atmosfera de intimidade, cumplicidade e empatia entre mulheres, por vezes a tocar o sensual, sublinhada pelas rotinas caseiras, pela associação entre a maternidade e a confcção da comida, sobretudo o pão e os doces, e por uma feminilidade simples e ancestral, ligada às tradições domésticas e às vivências familiares.

[Uma cena do filme:]

Pese eventualmente às feministas, Maryam Touzani consegue, em “Adam”, falar dos problemas das mulheres do seu país sem reduzir as suas personagens, ambas representativas de situações humanas e realidades sociais bem concretas e tangíveis — a viúva que tem que trabalhar para sobreviver, ser independente e prover à filha, e a rapariga grávida e sem marido nem meios de subsistência –, a bonecos demonstrativos ou a cartazes de comício. E dispensando também a facilidade de um final reconfortante para mãe e filho no mundo que vão enfrentar.