Foi “intuitivo”. Assim que recebeu o email alegadamente enviado por Rui Pinto para captar as credenciais de acesso ao sistema da sociedade de advogados PLMJ, Paula Martinho da Silva suspeitou logo de que poderia ser spam. Ouvida esta quinta-feira, naquela que é a 16.ª sessão do julgamento do Football Leaks, a advogada do PLMJ explicou que “intuitivamente” percebeu que, apesar de aparentar ter sido enviado pela Autoridade Tributária, “não parecia um email normal”, especialmente porque tinha um link para fazer um download — um “fator que suscita ainda mais dúvidas”

É uma prática que já faço há anos. Sempre que um email me aparece que pode suscitar dúvidas, envio para confirmação. É intuitivo também por causa das minhas funções. Estou muito atenta”, explicou a advogada.

Foi por isso que “nunca” abriu esse email e enviou-o antes para o informático responsável pelo sistema da PLMJ para que o pudesse verificar. Só que o informático, Luís Fernandes, ouvido também esta quinta-feira, acabaria por carregar no link que estava no email e inserir as suas credencias de acesso — sem saber que estava ao mesmo tempo a permitir o acessos ao sistema. “Admito que possa tê-lo feito para poder prestar apoio. Não o devia ter feito colocando as minhas credenciais“, admitiu. Luís Fernandes contou também ao tribunal que só soube que foi esse email que permitiu o acesso ao sistema quando foi ouvido na Polícia Judiciária (PJ).

Quando fui à PJ, foi-me mostrado este email e foi aí que me deram a indicação que tinha sido esta a porta de entrada. Disse que não me recordava do exato momento, mas que, no exercício das minhas funções, posso ter clicado no link“, explicou.

A caixa de correio eletrónico da advogada Paula Martinho da Silva, que tinha mais de dois mil emails, foi uma das que terá sido acedido por Rui Pinto. Em tribunal, explicou que tinha diversos documentos relacionados com a profissão, mas também informação pessoal. Alguns desses documentos tinham “muita informação de denúncias de corrupção”, disse sem adiantar mais pormenores.

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Descreveu como “avassalador” o facto de a sua caixa de email ter sido alegadamente acedida. “Foi muito difícil para mim enfrentar esta situação. Porque uma coisa já de si muito complicada é assaltarem-nos a casa: levam-nos as nossas coisas. Neste caso levaram as minhas coisas, mas também dos meus clientes, com quem existe uma relação de extrema confiança. Confiaram-me dados, confiando que os guardava”, desabafou. Paula Martinho da Silva admite não saber “qual foi o propósito do acesso” à sua caixa de correio e que ainda hoje “permanece a dúvida da utilização da imensidão de dados”. “É uma permanente incerteza que me torna vulnerável. Nunca sabemos se serão publicados ou não”, rematou.

O link que permitiu o ataque, o telefonema da Roménia e o “sobressalto constante”. Rui Pinto começou a ouvir o relato das vítimas

Durante a sessão da tarde, foram ainda ouvidos três advogados que trabalhavam na PLMJ aquando dos ataques. João Carminho era advogado estagiário nessa sociedade na altura em que o ataque ao sistema ocorreu e, ouvido em tribunal, relatou que o ambiente que se viveu na altura era de confusão e “de espanto”. Também ele viu uma pasta do seu computador a ser divulgada com “documentos em que trabalhava e sujeitos a sigilo profissional”. Percebeu que a pasta só podia ter sido retirada do seu computador porque “a organização” e “o nome dos documentos era exatamente igual”. Ainda assim, afirma: “Nunca senti que era nenhum alvo”.

O advogado José Formosinho Sanches relatou mesmo que teve “insónias todas as noites a pensar o que é que poderiam fazer com a informação que lá estava”. “Foi algo que me deixou bastante preocupado”, disse, adiantando que nas semanas que se seguiram, os advogados da PLMJ perderam “muitas horas a tentar perceber que conteúdo tinha sido copiado e o impacto. Na mesma linha, a advogada Sara Estima Martins disse que os ataques à PLMJ tiveram “um impacto muito grande”.

O sigilo profissional é o elemento mais importante na profissão de um advogado. É o pior que pode acontecer a um advogado”, acrescentou ainda.

Na quarta-feira, a sessão ficou marcada pelo depoimento de Amadeu Guerra, antigo diretor do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP). Em tribunal, garantiu que houve investigações relacionadas com o futebol — só não sabe se foram usados documentos divulgados pelo Football Leaks. E deixou uma garantia: no tempo em que estava nesse cargo “nunca” foi considerada “informação obtida ilicitamente” para abrir investigações, como os documentos que estavam no site criado pelo Football Leaks.

Ex-diretor do DCIAP recusa provas de Rui Pinto: “No meu tempo, nunca considerámos informação obtida ilicitamente”

Rui Pinto, o principal arguido, responde por 90 crimes — todos relacionados com o facto de ter acedido aos sistemas informáticos e caixas de emails de pessoas ligadas ao Sporting, à Doyen, à sociedade de advogados PLMJ, à Federação Portuguesa de Futebol, à Ordem dos Advogados e à PGR. Entre os visados estão Jorge Jesus, Bruno de Carvalho, o então diretor do DCIAP Amadeu Guerra ou o advogado José Miguel Júdice. São, assim 68 de acesso indevido, 14 de violação de correspondência, seis de acesso ilegítimo e ainda por sabotagem informática à SAD do Sporting e por tentativa de extorsão ao fundo de investimento Doyen.

Aníbal Pinto, o seu advogado à data dos alegados crimes, responde pelo crime de tentativa de extorsão. Isto porque, segundo a investigação, Rui Pinto terá exigido à Doyen um pagamento entre 500 mil e um milhão de euros para que não publicasse documentos relacionados com a sociedade que celebra contratos com clubes de futebol a nível mundial. Aníbal Pinto, então advogado do hacker, terá servido de seu intermediário. E é por isso que se sentam os dois, lado a lado, em frente ao coletivo de juízes.

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O alegado pirata informático esteve em prisão preventiva desde 22 de março de 2019 e foi colocado em prisão domiciliária a 8 de abril deste ano, numa casa disponibilizada pela PJ. Na sequência de um requerimento apresentado pela defesa do arguido, a juíza Margarida Alves, presidente do coletivo de juízes — que está a julgar Rui Pinto e que tem como adjuntos os juízes Ana Paula Conceição e Pedro Lucas — decidiu colocá-lo em liberdade. O alegado pirata informático deixou as instalações da PJ no início de agosto e a sua morada atual é desconhecida.