O projeto que gerou Perfil Perdido — a nova criação de Marco Martins que esta terça-feira (às 11h) se estreia no São Luiz Teatro Municipal — começou há quase dois anos: o trabalho de criação, diversas residências artísticas (em Portugal e em França), improviso e experimentação, tudo para moldar ideias, até à estreia internacional do espectáculo em Istambul. Era novembro de 2019. Estava previsto que a estreia nacional acontecesse antes, mas devido à pandemia em vigor, a mesma foi suspensa até agora. Altura em que volta a apresentar-se diante de um público e que se mostra diferente, com coisas que caíram e outras que se levantaram porque o tempo nunca dá grande crédito à estaticidade.

“É um espectáculo que está sempre a mudar, desde que fizemos as residências, em Portugal e em Paris, o espectáculo está em constante mutação, o tempo dá uma maturação e uma possibilidade de reflexão sobre o material que vai sendo criado. É muito diferente de um período de trabalho de dois meses, em que é preciso partir já com um programa pré-definido e é uma coisa de execução. Aqui há um terreno de experimentação de que gosto mais e que se tornou um terreno de cumplicidade, que permite que o risco seja maior, permite falhar mais vezes, permite abandonar certas ideias e criar uma coisa que acho que é essencial num espectáculo: uma linguagem comum entre os dois intérpretes, mesmo que tenham uma escola e uma história totalmente diferente”, enquadra Marco Martins.

O encenador admite que a premissa deste objeto nasceu de um desejo de juntar Beatriz Batarda e Romeu Runa em cena “e de explorar o tema da filiação enquanto entidade fundadora e, sobretudo, sobre a figura do pai.” Marco Martins queria tempo para aprofundar o particular. Se um ano de criação para projetos de comunidade — como são, no seu caso, Provisional Figures: Great Yarmouth ou o Estaleiros – ENVC 2012 — parece muito, talvez não o seja assim tanto se pensarmos no estabelecimento de relação, aproximação às pessoas, trabalho interpretativo com gente que não tem formação, etc.

Marco Martins queria tempo para estar com duas pessoas, ao invés de 100 e com estas duas pensar a questão do pai enquanto entidade autoritária:

“Tinha estado a trabalhar em projetos numa escala muito grande, com muitos intérpretes, e queria agora trabalhar numa escala mais pequena. E falar sobre a figura do pai. O pai é sempre muito presente, mesmo quando ausente, e mesmo quando somos órfãos. Em particular, a Beatriz e o Romeu tinham figuras paternais muito diversas entre eles, figuras paternais com influências sobre eles muito distintas. E sobre mim também, porque coincidiu com o nascimento do meu terceiro filho e embora tenha alguma dificuldade em falar dos projetos como obras autobiográficas também acho que existe essa componente em tudo o que fazemos e, se calhar, o tema do pai surge com o nascimento do meu terceiro filho, a quem coloquei o nome do meu pai”, admite.

Mas a relação deste também (às vezes primeiro que tudo) realizador com o seu pai, embora tenha tido enorme influência, não ditou de forma primordial o interesse nestas questões que quer erguer. “Sinto que é mais a minha paternidade, o facto de ter filhos com idades distintas [2, 4 e 13 anos] e de haver uma série de escolhas que vamos fazendo na educação, na forma como vamos transmitindo uma série de valores, talvez tenha partido daí a grande força impulsionadora para começar a trabalhar este tema.”

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Marco Martins: “Acho muito interessante esta ideia de questionarmos a representação, ou seja, sobretudo no meu trabalho para palco, estarmos sempre na permanente dúvida sobre a origem e a natureza daqueles textos e em que medida é que aquilo que nos está a ser contado se aproxima da biografia das personagens”

Depois, há a ideia, corroborada por Marco Martins, que diz que isto não é um dueto. É muito mais um trio do que um dueto, embora aquilo que se mova, aquilo que é mais palpável sejam os dois corpos, os de Beatriz Batarda e Romeu Runa. No entanto, há como que uma terceira personagem, representada por uma forma aproximada à de um cone gigante disposto ao fundo de cena, que é uma espécie de Big Father, uma personagem que começa por dizer: “Both of you guys are in big trouble”, uma personagem que manda. Sim, que dita as regras, que grita para assustar, que motiva um regresso, nervoso e encolhido, a um pseudo-ponto-zero, um lugar de castigo marcado no centro do palco. Também é a mesma personagem que, numa outra zona, assume o papel de um pai que emite um discurso violento perante os seus filhos — Beatriz e Romeu agora infantilizados.

E este “agora” pode ser tanta coisa. Vai sendo tanta outra coisa. Movidos a textos ricos e variados, onde se encontram nomes como Francis Bacon, Sophie Calle, Siri Hustvedt, Franz Kafka, Édouard Louis, Gonçalo M.Tavares, William Shakespeare, George Steiner, Slavoj Žižek, entre outros. Uma colagem de todas estas linguagens e individualidades a pensarem o querido pai:

“Acho que são mais de dez autores misturado e colados e samplados, quase. O critério de escolha foi quase sempre a figura paternal para o artista/criador, não por acaso há muitos textos de artistas e uma aproximação a uma suposta biografia dos intérpretes. Isto sem eu saber, porque não trabalhámos esta coisa do ‘ah conta-me histórias da tua infância’, isso não me interessa muito, acho sempre mais interessante quando não falamos de nós, mas interessava-me textos que se apropriassem dos atores”, explica.

Daí termos começado este texto a falar de contaminação. Como um determinado momento em que Romeu Runa fala de um passado longínquo, quando dançava no quarto meio às escondidas, com medo de represálias, um passado onde o pai dizia:

“Romeu, já te disse que para não acreditares em todas as merdas que a tua mãe diz”

Mas é aqui que está o jogo proposta por Marco Martins, essa zona corresponde a um texto de um autor, que nunca escreve “Romeu” e que nunca poderia ter escrito porque não o conhece, mas talvez haja alguma proximidade e algum ilusionismo:

“Sim, a biografia do Edouard Louis tem pontos de contacto com aquilo que a gente acha que é o pai do Romeu, o que poderia ser o pai do Romeu. O que achei interessante nesse texto em particular é a ideia de uma criança que dança no seu quarto e que acha que isso vai ser reprovado pelos pais, esta ideia de nunca sabermos se os pais vão aprovar, de que maneira é que aquilo que estamos a fazer é um reflexo direto daquilo que nos foi ensinado, essa ideia da cadeia genética que vai sendo transmitida.”

E isto não é propriamente mania nova do criador. Esta ideia do micro curto-circuito, da incerteza, mesmo quando só dura meio segundo vem já de Actores, espectáculo de 2018, onde já brincava à ficção/realidade, a partir de uma biografia ora real, ora inventada das cinco pessoas que tinha em cena:

“Acho muito interessante esta ideia de questionarmos a representação, ou seja, sobretudo no meu trabalho para palco, estarmos sempre na permanente dúvida sobre a origem e a natureza daqueles textos e em que medida é que aquilo que nos está a ser contado se aproxima da biografia das personagens ou se é algo externo, esse lado metadiscursivo interessa-me bastante”, afirma.

Há mais em palco e fora dele, mas a intensidade de “Perfil Perdido” está nos corpos de Romeu Runa e Beatriz Batarda

Tal como o fez no processo de Provisional Figures: Great Yarmouth, um espectáculo que trabalhava com uma série de não-atores da cidade costeira britânica de Great Yarmouth. Aí acabou por criar uma obra ficcional, mas começou numa base não muito distante de esta, por recolher textos (em forma de testemunhos) dos trabalhadores e de outros habitantes de Yarmouth, passaram-lhe pelo estúdio umas 40/50 pessoas. Aquilo que era uma obra aparentemente documental deixou de o ser, sobretudo pelo mecanismo de colocar gente a dizer textos de outra gente, não muito distante.

E isso leva-nos a uma constatação muito concreta: há uma rejeição do drama, da narrativa, na obra de Marco Martins, sobretudo para palco. Se pensarmos, por exemplo, num filme como “São Jorge”, isso não se aplica de forma nenhuma:

“O ‘São Jorge’ volta a ter uma grande crença na possibilidade da ficção, se calhar acho que o trabalho de palco para mim enquanto criador implica sempre uma distância e um questionamento dessa representação, mais do que em cinema. A minha formação é de cinema e a ideia de fazer teatro de repertório é uma ideia que, hoje em dia, se começa a afastar, acho que é um terreno que podia explorar em cinema, o teatro acho que oferece muito mais possibilidades. Mas a ideia da exploração de uma narrativa aristotélica, causa-efeito, não é o que mais me atrai”, comenta.

Para os próximos tempos, é possível que volta a acreditar no drama. The Great Yarmouth, que começou por ser um espectáculo, virou um filme, que já esteve mais longe de conhecer o sol: “Comecei a rodagem em Março, em Great Yarmouth, rodámos durante duas semanas e parou. E depois o British Film Institute (BFI) atribuiu ao projeto um apoio extra que nos permitiu voltar a rodar em setembro. Voltei a Great Yarmouth e consegui terminar o filme, com um orçamento substancialmente maior. O que a Covid-19 trouxe foi orçamentos duplicados, sobretudo por toda a bateria de testes que é preciso fazer e este não era de todo um filme pensado para fazer em tempos de pandemia porque tinha muitas personagens e muitas cenas em lugares públicos, em fábricas, em pubs, e, portanto, só com esta entrada em força do BFI e de outros produtores foi possível terminar o filme. Vai entrar no próximo mês em fase de montagem, espero que ainda esteja pronto no próximo ano”, revela.