O primeiro disco de Brad Mehldau como líder a ter difusão internacional foi Introducing Brad Mehldau, surgido em 1995, mas foi com a magistral série The art of the trio, com cinco volumes editados entre 1997 e 2001, que o pianista americano conquistou lugar cimeiro no jazz do nosso tempo. Mesmo quando abandonou a designação The art of the trio, Mehldau continuou a privilegiar o formato trio, na telepática parceria com o contrabaixista Larry Grenadier e o baterista Jeff Ballard (que substituiu Jorge Rossy a partir de 2005). Porém, em tempos de pandemia, três é uma multidão e para gravar Suite: April 2020 Mehldau escolheu o piano solo, um formato que até à data, só explorara em registos ao vivo e está documentado nos álbuns Live in Tokyo (2003), Live in Marciac (2006) e 10 Years Solo Live (2004-14).

Sozinho com o piano nos Power Sound Studios de Amesterdão (cidade onde Mehldau tem casa), nos dias 22 e 23 de Abril passado, Mehldau registou música que, de acordo com as suas notas de capa, pretende ser um testemunho das alterações que a pandemia de Covid-19 trouxe às vidas da maioria das pessoas – sobretudo no plano das relações humanas.

[Brad Mehldau apresenta o álbum:]

Alguns dos títulos das 12 breves e singelas peças que formam a suíte April 2020 refletem o “novo normal” das semanas de lockdown: em “Keeping distance” a mão esquerda e a mão direita envolvem-se numa dança esquiva e hesitante, feita de avanços e recuos e harmonias ambíguas, “Remembering before all this” deixa perpassar um sentimento de nostalgia por um tempo em que éramos felizes e não o sabíamos, “Yearning” é uma balada romântica e afetuosa, evocando os standards de outros tempos e, a fechar, “Lullaby”, garante, como compete a uma canção de embalar, que não há monstros debaixo da cama e “vai ficar tudo bem”.

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[“Keeping distance”:]

Em complemento à suíte, Mehldau incluiu duas versões de canções pop: a magnífica “Don’t let it bring you down”, do clássico álbum After the goldrush, de Neil Young, que exorta a que não nos deixemos abater pelos infortúnios e avaliemos estes com distanciamento, e “New York state of mind”, de Billy Joel, que fará sentido sobretudo para os que vivem ou fazem vida na Big Apple e ficaram desconsolados por a fervilhante metrópole “que nunca dorme” ter ficado convertida numa cidade fantasma durante algumas semanas. A fechar, “Look for the silver lining”, um standard de Jerome Kern, reafirma o sentimento de esperança perante a adversidade: até as nuvens mais escuras têm um rebordo luminoso, como reza o adágio.

[“Don’t let it bring you down”:]

Apesar de algumas das peças estarem tingidas de melancolia, a sensação genérica que se desprende do disco é amável e consoladora – é um ansiolítico musical em piano solo e em 15 drageias e que, embora mantendo os padrões elevados a que Mehldau nos habituou, não figurará certamente entre os cumes da sua notável discografia (pode mesmo perguntar-se o que faz no disco o banal boogie woogie intitulado “Waiting”). Como muita outra “arte do confinamento” produzida nos meses de março a maio, Suite: April 2020 espelha, por um lado, o sentimento de mágoa e auto-comiseração que se vivia então nos estratos da sociedade ocidental que há muito tinha excluído do seu horizonte mental a possibilidade de algo tão arcaico como uma pandemia poder estilhaçar as suas rotinas, e, por outro, a convicção de que saberemos superar este desafio (ou, como reza o refrão da canção de Neil Young, “you will come around”). Resta saber se iremos sair dele mais sábios, solidários e humanos, como muita gente parecia crer em Abril.

Atendendo a que a “arte do confinamento” tem produzido uma torrente de obras auto-complacentes, amadoras e até francamente indigentes, Suite: April 2020 pode ser visto como um dos seus frutos mais dignos.

Título: Suite: April 2020
Intérprete: Brad Mehldau
Editora: Nonesuch/Warner
Edição: junho de 2020