Converter excrementos em energia eléctrica parece ser um negócio sustentável e com futuro, pois depende basicamente do volume de matéria-prima. E, sobre isso, os australianos da Urban Utilities não têm quaisquer dúvidas: “Os mais de 330 mil habitantes de Brisbane (a capital do estado de Queensland) podem até nem se aperceber disso, mas estão a ajudar a criar combustível para os nossos veículos que são recarregados com cocó”, explica a porta-voz da empresa Anna Hartley.

Surpreso? Possivelmente, a surpresa seria (ainda) maior se visse a forma como foi decorado o Hyundai Kauai EV que circula com a electricidade gerada a partir desta peculiar fonte de energia. Para que não restem dúvidas quanto à natureza do projecto, o SUV sul-coreano exibe um vinil decorado com uma enorme… poia.

Essa imagem vale mais que muitas palavras e acaba por ser uma forma de incentivar a população a dar o seu contributo para uma mobilidade mais amiga do ambiente. Até porque, esclarece Anna Hartley, a simples necessidade quotidiana de ir à casa de banho é energeticamente mensurável. Segundo a porta-voz da Urban Utilities, os “hábitos diários” de uma pessoa, isto é, as suas necessidades fisiológicas, podem gerar electricidade suficiente para alimentar o Kauai a bateria por perto de meio quilómetro (450 metros). Ou seja, se todos fizerem a sua parte, a autonomia dispara – sempre com energia “verde” (ou de outra cor, dependendo do que se ingeriu).

O primeiro eléctrico “cocó”, como a própria empresa o designa (“Poo Car”), está em circulação desde 2017. É um pequeno Mitsubishi i-MiEV que recebe agora a companhia da unidade número dois, o Hyundai Kauai com o referido vinil, que é descrito como tendo um “design atraente”. Impactante é, com toda a certeza.

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A Urban Utilities é uma das maiores empresas australianas no domínio das águas e esgotos. Foi justamente para aproveitar estes últimos que a companhia lançou um projecto que consiste em aproveitar o biogás gerado a partir do tratamento das águas residuais para alimentar uma unidade de cogeração de electricidade.

De acordo com a informação da companhia, a electricidade gerada a partir desta fonte renovável foi suficiente, em 2020, para suprir o equivalente às necessidades energéticas de 4000 habitações. A Urban Utilities assevera que o aproveitamento dos dejectos humanos não só ajuda a manter carros na estrada, como contribui para a operação das duas maiores estações de tratamento de águas residuais da empresa. Feitas as contas, a ideia de “caca” já permitiu poupar, por ano, 1,7 milhões de dólares australianos em custos operacionais, perto de 1,1 milhões de euros. “Ao aproveitar a energia do cocó, estamos a reduzir os nossos custos operacionais e a ajudar o meio ambiente ao usar uma fonte de energia mais sustentável”, sublinha Hartley.

Da necessidade se faz electricidade

O projecto da Urban Utilities não é primeiro do género e nem irá ser o último, pois trata-se de recolher o gás libertado pela matéria em decomposição, essencialmente metano e, com ele, alimentar uma turbina que move um gerador capaz de produzir electricidade. Esta energia é depois utilizada para injectar na rede eléctrica, ou directamente para alimentar veículos eléctricos ou as estações de tratamentos de águas residuais.

No passado existiram outros projectos que também partiam de dejectos humanos, mas onde o objectivo passava por extrair o metano – que representa entre 85% e 95% do gás natural – e utilizá-lo como substituto da gasolina ou do gasóleo para alimentar motores de combustão convencionais. Se por um lado impediam o metano produzido pela fezes de ser libertado para a atmosfera, o que é bom, por outro a sua queima não é isenta de poluentes.

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Exemplo disso é o caso de um VW Beetle descapotável que surgiu em 2010 em Inglaterra, país que em 2016 colocou em circulação um autocarro, com uma decoração deveras elucidativa, para transportar passageiros até ao aeroporto de Bristol. Ambos os projectos eram controlados pela GENeco e defendiam a utilização do metano em motores de combustão como alternativa aos combustíveis tradicionais. Contudo, apesar de algumas vantagens ambientais, estas não foram suficientes para impedir o abandono da ideia.

Mais recentemente, em 2019, a Toyota apresentou no Salão de Tóquio um Mirai cuja energia era produzida a bordo por uma célula de combustível a hidrogénio, com a particularidade de este gás ser produzido através do metano libertado pelos excrementos de vacas. É uma solução possível para gerar hidrogénio, mas fora do convencional e longe do ideal, uma vez que o metano é 86 vezes mais responsável pelo efeito estufa do que o CO2. Para ser interessante para o ambiente, o hidrogénio para o Mirai deverá ser produzido pela electrólise da água, com energia renovável.

Também em 2019, na Califórnia, surgiu um projecto liderado pela BMW e pela Straus Organic Dairy, que capturava metano do processamento de excremento de vacas, para depois o utilizar como energia renovável, impedindo a sua libertação para atmosfera.

Este foi o tema da última Operação Stop, podcast da Rádio Observador que pode ouvir aqui.