Afinal, não foi apenas com a Rússia: a câmara municipal de Lisboa também já partilhou com a embaixada de Israel os planos de ativistas pró-Palestina que tencionavam organizar um protesto na capital portuguesa. E, numa revelação que desmonta a tese defendida esta quinta-feira por Fernando Medina, as manifestações não foram comunicadas à embaixada israelita por o protesto se realizar à porta da representação diplomática — mas apenas porque Israel era visado pelo protesto, que aconteceu a mais de dois quilómetros da embaixada.
De acordo com o jornal Público, o caso remonta a junho de 2019, ano em que o cantor brasileiro Milton Nascimento passou por Lisboa para um concerto no Coliseu dos Recreios. Dessa digressão constava também um concerto na cidade israelita de Telavive, quatro dias depois do concerto em Portugal, e os ativistas procuravam demovê-lo de realizar o concerto em Israel para que, com ele, não legitimassem “o regime de apartheid” do país.
O protesto, organizado por membros do Comité de Solidariedade com a Palestina, foi agendado de acordo com a legislação portuguesa — e os ativistas comunicaram a intenção de realizar a manifestação à câmara de Lisboa. Quando receberam, por correio eletrónico, a confirmação de que tudo estava em ordem, os ativistas perceberam que os seus planos tinham sido encaminhados à embaixada de Israel em Lisboa, mesmo que o protesto não estivesse agendado para o Coliseu dos Recreios, que fica a mais de dois quilómetros da representação diplomática.
Medina e o caso dos ativistas anti-Putin. O que se sabe, o que falta saber e o que pode acontecer
Perplexos, os ativistas pediram explicações à autarquia. Em resposta, o gabinete de Fernando Medina enviou aos manifestantes uma mensagem de correio eletrónico — citada pelo Público e a que o Observador teve entretanto acesso — dizendo-lhes que se tratava de uma “prática habitual” da autarquia. “Desde a extinção dos governos civis, são as câmaras municipais os organismos que recebem as comunicações da parte das entidades promotoras de manifestações no espaço público”, disse a autarquia. “É prática habitual da Câmara Municipal de Lisboa, desde essa data, reencaminhar essa informação para várias entidades, nomeadamente, as forças de segurança e o Ministério da Administração Interna.”
“Sempre que um país é visado pelo tema de uma manifestação, a sua representação diplomática no nosso país é igualmente informada”, acrescentou a câmara.
Esta quinta-feira, Fernando Medina disse o contrário, defendendo-se da polémica em torno da partilha de dados de manifestantes anti-Putin com a embaixada russa. “Não é nenhuma informação enviada à Rússia ou a um país estrangeiro. É a uma embaixada por ser esse o local da realização da manifestação“, disse. Afinal, percebe-se que não é isto que sucede na autarquia — os países são informados dos detalhes dos protestos caso sejam visados por uma manifestação.
Aos ativistas pró-Palestina, a autarquia confirmou que a prática era habitual e que o mesmo já tinha acontecido com a China e a Venezuela.
“Por exemplo, tal procedimento foi feito aquando da comunicação recebida sobre a concentração promovida pelo Grupo de Apoio ao Tibete, no dia 25 de abril de 2019, no Largo do Camões, que assinalou o aniversário do Panchen Lama, a segunda pessoa mais importante na hierarquia tibetana logo a seguir ao Dalai Lama (…), o mais jovem prisioneiro político do mundo, raptado pelas autoridades chinesas (…)”, explicava a autarquia. “Nesse caso, foi informada a embaixada da China.”
“Igual procedimento foi adotado aquando da comunicação recebida por parte de um conjunto de cidadãos que, ’em solidariedade com o povo da Venezuela’, dinamizaram no dia 10 de Junho de 2019, ‘uma ação pública de informação sobre o bloqueio ilegal de fundos estatais venezuelanos pelo Novo Banco’. Esta ação decorreu frente à sede daquele banco na Avenida da Liberdade e a embaixada da Venezuela foi informada da manifestação“, acrescentou a câmara municipal.
As novas informações sobre o modo como a câmara de Lisboa partilha informação sobre protestos que ocorrem na capital surgem numa altura em que a atualidade política portuguesa ficou marcada pela polémica em torno da entrega, por parte da autarquia, de dados pessoais de ativistas anti-Putin que vivem em Portugal ao governo russo.
O caso, noticiado na quarta-feira pelo Observador e pelo Expresso, remonta a janeiro deste ano, quando três cidadãos russos (dois deles também com nacionalidade portuguesa) organizaram uma manifestação em frente à embaixada russa em Lisboa pedindo a libertação do ativista Alexei Navalny, detido em 17 de janeiro depois de aterrar em Moscovo. A câmara municipal de Lisboa, a quem foi pedida a autorização formal para o protesto, enviou à embaixada da Rússia os nomes, moradas e contactos dos organizadores.
Depois da publicação das primeiras notícias, na noite de quarta-feira, Fernando Medina apressou-se a pedir desculpa pelo caso e justificar o que aconteceu com um procedimento administrativo habitual. Primeiro, a autarquia fê-lo através de um comunicado em que rejeitou qualquer “cumplicidade com o regime russo“; depois o próprio Medina falou aos jornalistas para sublinhar que a situação “não deveria ter acontecido” — e para explicar que a câmara tinha pedido à embaixada russa que apagasse os dados.
O principal opositor de Medina na corrida autárquica na capital, o social-democrata Carlos Moedas, foi um dos primeiros a reagir duramente, tendo vindo de imediato exigir a demissão do autarca — exigência que repetiu esta quinta-feira já depois do pedido de desculpas de Medina. Ao longo desta quinta-feira, o caso transformou-se na principal polémica política do país, tendo merecido duras críticas da parte de todos os partidos: o CDS falou em “terrorismo político”, Rui Rio anunciou que ia chamar Medina e Santos Silva ao Parlamento (e o PSD vai levar o caso às instituições europeias), o Bloco de Esquerda quis saber se o mesmo aconteceu com outros países, André Ventura pediu a intervenção do Ministério Público, o PAN pediu um “cartão vermelho” a Medina, Jerónimo de Sousa considerou que o caso era “grave” e a Iniciativa Liberal acusou a autarquia de pôr em causa a segurança dos três cidadãos e das suas famílias. O ministro dos Negócios Estrangeiros já confirmou que está disponível para ser ouvido no Parlamento.
Também o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, já se pronunciou sobre o caso. Aliás, fê-lo por três vezes. Na ilha da Madeira, onde comemorou o 10 de Junho, Marcelo começou por dizer que ia averiguar tudo o que se tinha passado. Depois, confirmou que o caso “não corresponde” ao “princípio fundamental de respeito pelas pessoas e pelos seus direitos“. Por fim, e já depois de ter falado por telefone com Fernando Medina, Marcelo confirmou que considera o caso “lamentável”, mas disse ter percebido os contornos burocráticos da questão e o pedido de desculpas de Medina.