“Coentros” terá sido, talvez, a primeira palavra que aprendeu a dizer em português. Aprendeu a falar a língua de Camões nas mercearias e com as senhoras mais velhas do bairro quando ainda vivia na Graça, em tempos. A vida de Anne Colin já deu muitas voltas, e numa dessas voltas ao mundo, numa viagem, deixou para trás Paris e mudou-se para Portugal. Apaixonou-se pelas terras, pelas gentes e, sobretudo, pela comida. Comer é com ela, mas cozinhar também, e como mulher de ideias fixas que é, conseguiu, finalmente, concretizar o sonho de ter uma casa aberta e servir comida feita por si — Anne é A Ilegítima. Fez nascer esta experiência gastronómica, com menus de jantar caseiros feitos com ingredientes frescos e locais servidos na mesa comunitária numa sala de sua casa. Para acompanhar, há vinhos naturais, conversas intimistas e uma catrefada de obras de arte, tudo para venda.

A história começa em França e num universo muito, mas muito longe da cozinha. Enquanto vai preparando a mesa de entradas daquele que é o segundo jantar d’A Ilegítima, a parisiense admite, apressadamente e num português fluente, que sempre detestou ser advogada. “Eu acho que me mantive na profissão durante alguns anos porque eu gosto de provar que tenho razão, nos casos e na vida no geral, isso dava-me gozo, mas comecei a perceber que não era a minha praia”, começa por dizer.

E como é que se chega à cozinha? Estando em França, e sobretudo em Paris, não é difícil apanhar-lhe o gosto. Foi com o agora ex-marido Antoine, também ligado à cozinha, que descobriu num restaurante local que, “se calhar, o caminho era por ali”.

A Ilegítima é uma casa de experimentação luso-francesa. Anne está sozinha no projeto mas tem ajuda do seu companheiro Nicolas ©Nicolas Buisson

Mas o gosto pela cozinha vem de família também, não que os familiares tivessem restaurantes ou fossem cozinheiros, mas é uma paixão que herdou do seu avô, que adorava receber convidados em casa. “Chegavam a sentar-se à mesa, em almoços de família e amigos, quase 40 pessoas. Era sempre um ritual e o meu avô era o melhor anfitrião”, relembra. “Cresci a ver isso acontecer, e a minha mãe fazia imensos jantares também, o momento do aperitivo era o auge para ela, poder ter já tudo pronto quando os convidados chegavam era o ponto alto”.

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Na verdade, a cozinha acabou por lhe chegar como uma extensão da arte e do prazer do bem-receber, que Anne herdou e a fez querer ser não só uma boa anfitriã mas também uma que anda de volta dos bicos de fogão.

Mas quando lhe perguntam como aprendeu a cozinhar a resposta não é imediata, até porque ela própria não sabe bem como tudo isto aconteceu. “A paixão pela cozinha era grande, mas acho que um dia foi tão banal eu ter ido para a cozinha preparar algo e de repente estava incrível que fiquei espantada comigo mesma: ‘afinal sei cozinhar’”, conta. “Ajuda o facto de ter uma espécie de memória fotográfica, consigo aprender muito rápido e leio muito sobre cozinha, vou apanhando técnicas, mas não me forço a nada”.

Já Portugal foi uma surpresa que a francesa não esperava encontrar. Nunca cá tinha postos os pés antes de 2014, ano em que partiu numa grande viagem pelo mundo com Antoine e onde Portugal estava no mapa como uma das últimas paragens antes de Marrocos e do regresso a Paris. “Era a minha primeira vez cá, e eu não tenho palavras para o que vi, para as pessoas que encontrei. Apaixonei-me pelo Alentejo por completo”, recorda. “Descobri a açorda, o porco alentejano, o milho, os coentros, acho que foi a minha primeira palavra em português”.

Posto isto, mudou-se em 2015 com Antoine e os dois tinham em mãos um projeto de abrir por cá um restaurante. Compraram uma casa com dois pisos na Calçada Duque de Lafões, no Beato, e reconstruíram-na — nos anos 40, o espaço era uma escola primária e veio depois a ser uma churrasqueira a carvão conhecida no bairro.

Anne admite que não é nem quer ser chef. Quer apenas receber pessoas para que comam a sua comida e tenham uma experiência diferente ©Nicolas Buisson

Mas a sua estadia por Portugal teve história antes de abraçar A Ilegítima. Começou com uma empresa de catering, a Maison Legrand Lisbonne, onde na altura fazia eventos com o marido, que iam desde o jantar privado em casa de alguém a outros com centenas de pessoas. Depois disso, estacionaram à porta do Collectors Marvila, projeto dos donos da antiga loja Vintage Department, com a food truck Ilegítimo, onde serviam hambúrgueres caseiros e bowls, tudo feito artesanalmente.

“Mas a vida acontece”, lamenta, e Anne e Antoine acabaram por se divorciar e não levar avante o projeto a dois. “Fiquei com esta casa quase acabada, tudo pronto para receber realmente um restaurante no piso de baixo, mas na minha cabeça eu nunca tinha tido um restaurante, tinha outra ideia, tinha um sonho”, confessa, servindo os copos que serão já os da refeição com Astronaut, um espumante da Bairrada orgânico. “Eu queria um lugar pequeno com um ambiente diferente, onde a comida se faz sem stress, como se estivesses a cozinhar em casa. Era isso que eu queria, um espaço para receber pessoas que fosse como uma casa”.

Depois da insistência de muitos dos seus amigos para que vendesse a casa, Anne seguiu o instinto e ficou com ela para fazer nascer no final de maio deste ano aquilo que não é um restaurante, é A Ilegítima.

Mi casa es tu casa

A verdade é que todo o conceito deste não-restaurante gira à volta do prazer e da paixão do bem-receber. E Anne recebe-nos em sua casa, literalmente. No andar de cima é onde os visitantes não pisam a linha da privacidade, mas o piso térreo é de todos. “Isto é a minha casa, mas passa a ser a de todos os que reservarem um lugar à mesa, não tenho pudor nessa partilha de espaço alheio”.

Partilha essa que acontece duas vezes por semana, às quartas e quintas, dias em que abre as portas para os jantares preparados por si. Tudo é caseiro, feito com a ajuda de Nicolas Buisson, fotógrafo de comida e atual companheiro, que ajuda na comunicação do projeto e dá uma mãozinha na cozinha.

Na noite em que o Observador visitou A Ilegítima foi servida pá de borrego assado e legumes no forno ©Nicolas Buisson

“A cozinha para mim não é uma coisa para ser complicada, acho que a simplicidade torna tudo tão mais autêntico e até saboroso, não consigo olhar para a cozinha como um bicho de sete cabeças”, afirma. “Eu não cozinho para mim, mas amo cozinhar para os outros, tenho um prazer enorme nisso e é daí que vem este projeto também”.

Os menus mudam todas as semanas, não há barreiras nem imposições sobre o que Anne quer ou pode cozinhar. É o que lhe apetecer, é o que for fresco nessa semana, tanto dá. Como a cozinha portuguesa ganhou lugar especial no seu coração, poderá ser habitual vê-la cozinhar pratos típicos, mas nunca restritos a essa gastronomia. Tanto se serve pá de borrego, como pão de fermentação lenta com foie gras, frango assado no forno ou massa choux com queijo emental. Existe sempre um prato vegetariano caso a pessoa, no momento da reserva, faça esse pedido, até porque Anne não quer criar barreiras a ninguém para que todos possam viver a experiência. Isto às quartas-feiras, o dia mais especial, que exige reserva — seja individual ou se grupo — e cujos menus ficam entre 30 e 40 euros com entrada, prato principal, sobremesa e uma bebida.

E por falar em bebidas, aqui Anne dá prioridade aos vinhos naturais. Tem muitas referências portuguesas, mas as suas origens obrigam-na a trazer também alguns franceses e, em breve, italianos. Os vinhos são servidos no copo de cada pessoa, o único usado durante a refeição, e identificado com o respetivo nome.

Para as Pasta Thursdays não é necessário reserva, basta aparecer ©Nicolas Buisson

Às quintas-feiras trocam-se as receitas e a parisiense traz à tona o seu amor por Itália — que diz ser o próximo país onde quer viver — e faz dessas noites as Pasta Thursdays, dedicadas à comida italiana. Mais uma vez é a sua paixão que a faz aventurar-se na cozinha e nas receitas de massa fresca que ela própria faz para essas noites. O menu fica a 25 euros com entrada, prato e uma bebida incluída, sendo que nestas noites não é necessário reserva, basta aparecer.

Os ingredientes usados na confeção também são escolhidos com todo o cuidado possível. As carnes, por exemplo, vêm do Talho Luís & Edgar, na Graça, onde Anne sempre comprou quando morava no bairro. O pão também é artesanal e de fermentação natural, vai mudando de semana a semana, mas habitualmente é da padaria Terrapão ou da The Millstone Sourdough. Os legumes biológicos vêm da horta a 50 metros dali, de um projeto recente chamado O Grilo Beato, uma horta urbana dentro do Palácio do Grilo.

A mesa, com espaço para receber entre 14 a 16 pessoas, não é deixada ao acaso, ou guardasse Anne uma coleção de mais de 400 pratos de inúmeros serviços. “Pôr a mesa é um ritual, acho que toda a gente devia ter cuidado a escolher os pratos, os copos, a toalha. A decoração influencia a experiência gastronómica e eu tenho muito cuidado com isso”, diz, tirando do armário azul vários exemplares Vista Alegre, que trouxe de um prédio em ruínas, outros da Casa Cubista e até mesmo um serviço da ceramista Cecile Mestelan.

Os móveis e grande parte do mobiliário é da loja vintageMidMod ©Nicolas Buisson

Foi ao longo do tempo em que esteve instalada no armazém Collectors que conheceu muitas das pessoas que a ajudaram a pôr de pé o que tem agora. Sim, porque A Ilegítima vai além da comida, a experiência faz-se com todo o envolvente que, por sinal, está à venda. A loja vintage Mid Mod foi a responsável por grande parte do mobiliário que compõe o cenário, e os móveis azul Klein, que arrumam os vinhos, as loiças e alguns patês e geleias, dão conta do recado na hora de tornar o espaço impactante. Também as obras do artista francês Emmanuel Babled, com estúdio em Lisboa, prendem o olhar junto aos livros de culinária e cozinha que Anne empilha numa das prateleiras. Depois há a “parede dos artistas”, como lhe chama enquanto nos mostra os quadros do pintor Pedro Batista, o primeiro a expor o seu trabalho n’A Ilegítima.

Todas as peças estão à venda, “faz parte da experiência”, diz. “Até a minha casa pode estar à venda. Se alguém chegar com um bom preço eu não digo que não. Eu estou em modo nómada, vivi numa família mais clássica e tenho ainda muita coisa que me retraio, mas por outro lado tenho uma veia muito impulsiva e desprendida”, admite. “Seria feliz só de saber que consegui montar este projeto, tenha ele a duração de um mês ou um ano”.

“A imprevisibilidade faz parte da magia da experiência”

A conversa flui e Nicolas desossa a pá de borrego que vai ser o prato principal do menu daquela noite — Anne adora borrego e não tem problemas em dizer que cozinha o que quer, o que gosta e o que lhe apetece experimentar “de vez em quando”.

“Por exemplo, esta tarte que hoje vou servir de sobremesa é a primeira vez que a fiz, decidi testar”, confessa. “Há um aqui um lado de imprevisibilidade que faz parte do que se vive durante estes jantares, faz parte da experiência. Como é óbvio não vou servir coisas que não estejam boas, mas se me apetecer cozinhar algo novo, que nunca experimentei, por que não?”.

No fim da refeição, não sobrou tarte para contar a história — era feita com base de bolacha caseira, ganache de chocolate negro consistente e acompanhada de uma calda de laranja. Mais uma prova superada para Anne: “todos gostaram, boa!”.

A experiência fala por si e, dos jantares que já serviu, tem recebido em sua casa pessoas muito diferentes. Uns que não percebem bem o conceito, vão a medo mas com curiosidade em experimentar; outros que já viram isto lá fora e chegam com este mundo e o outro para conversar. “Eu gosto disto, de não saber quem são as pessoas mas poder sentar-me à mesa com elas e conhecer as suas histórias, falar sobre comida, sobre relações, sobre arte”, diz. A Anne atrai-lhe esta conexão que se cria entre completos estranhos unidos pela comida.

A Ilegítima funciona em open space e a cozinha está à vista de todos, desde a confeção ao empratamento ©Nicolas Buisson

“Ter um restaurante é algo muito sério, adoro viajar e tenho mais projetos pendentes em Portugal para desenvolver outras coisas — estou a fazer cestaria, por exemplo. Não conseguia ter um restaurante todos os dias”, explica dizendo que o espaço também está disponível para ser alugado para eventos privados, seja com Anne ao leme da cozinha, seja com outro chef que quem alugue queira. “Há muitos poucos limites para o que possa acontecer neste espaço, seja ao nível da comida, seja ao nível das artes”.

O jantar desse dia, à semelhança de outros, termina com uma pergunta que acaba sempre por surgir. Muita gente lhe pergunta se decidiu ser A Ilegítima pelo facto de não ser chef, ou daquele seu espaço não ser um restaurante, para sustentar expectativas que saiam defraudadas. Bem, também, mas não só. A história vai além disso e Anne não se contém na hora de a contar, porque se há coincidências nesta história toda, esta é uma delas. O espaço fica a meio da Calçada Duque de Lafões, um título nobiliárquico atribuído a D. Miguel de Bragança, filho ilegítimo de D. Pedro II com a francesa Anne Marie Armande Pastré de Verger. “Ele era filho ilegítimo e, mais do que isso, a mulher com quem o rei teve o filho fora do casamento era francesa e chamava-se Anne. Eu sou Anne, moro nesta rua e achei que tinha de agarrar nesta coincidência e adaptá-la à minha história. Sou A Ilegítima!”.

Reservas através do Instagram (@a_ilegitima).